Caso Gabby Petito: machismo policial pode ter colaborado para desfecho trágico

Advogada especialista em Direito da Mulher alerta para despreparo das polícias em casos de violência doméstica

Lançado há menos de uma semana na Netflix, o documentário Homicídio nos EUA: Gaby Petito já está entre os mais vistos no Brasil. Nele é percorrida a linha do tempo do relacionamento entre o casal de norte-americanos Gaby Petito e Brian Laundrie, e os eventos que culminaram na morte da jovem, vítima fatal de violência doméstica. Um dos momentos que mais chama a atenção no documentário é a exibição da conduta de policiais durante abordagem realizada em resposta a uma denúncia de agressão entre o casal. Nas cenas, gravadas por câmeras corporais dos profissionais poucas semanas antes de ela ser morta, Gaby é considerada a agressora e Laundrie a vítima.

Gaby Petito e Brian Laundrie durante abordagem policial em Moab, município do estado americano de UtahReprodução documentário Homicídio nos EUA: Gaby Petito

A ação ocorreu em uma estrada em Moab, município do estado americano de Utah, por onde o casal passava em sua van, usada como moradia durante uma viagem pelo país que era publicada em uma conta criada por Petito no Youtube. A solução oferecida pela polícia para o conflito foi enviar Brian para um hotel de acolhimento de vítimas de violência doméstica, e Gaby seguir a viagem com a Van. O casal se reencontrou em seguida, e poucos dias depois ela foi encontrada morta no Parque Nacional Grand Teton, Wyoming, com a confirmação de ter sido estrangulada.

Dados de 2024 do NCADV – National Coalition Against Domestic Violence (Coalizão Nacional Contra a Violência Doméstica em Português), mostram que, nos EUA, uma em cada quatro mulheres sofrem violência doméstica. No Brasil, os últimos dados são referentes a 2023. O Anuário de Segurança Pública identificou que mais de 250 mil brasileiras vivenciaram o problema. O número 190, da Polícia Militar, foi acionado 848.036 vezes para reportar episódios de violência doméstica no país.

Marilia Golfieri Angella_fundadora do Marilia Golfieri Angella Advogcacia Familiar e Social. Foto: Thais Lopes

Segundo Marilia Golfieri Angella, especialista em direito da mulher e sócia do Marilia Golfieri Angella Advocacia Familiar e Social, a falta de capacitação demonstrada pelos policiais neste caso não é exclusividade dos estadunidenses. “Aqui no Brasil, a polícia e outros funcionários atuantes na linha de frente em defesa da mulher vítima de violência doméstica emitem informações falsas, usam falas misóginas e preconceituosas, e podem inclusive descredibilizar a mulher e afugentá-la na hora da denúncia”, explica.

Angella relembra que o programa “Mulher, Viver sem Violência” política pública ativa desde 2013 e atualizado em 2023 por meio do decreto nº 11.431/2023, tem como objetivo justamente ampliar e melhorar os atendimentos dos serviços públicos voltados para as mulheres em situação de violência. Mas os resultados disso ainda são tímidos. “Mesmo que haja expressa menção nos decretos de 2013 e de 2023 a respeito da necessidade de capacitação, qualificação e humanização do atendimento dessas mulheres, essa não é uma constante em todos os estabelecimentos voltados ao combate da violência doméstica”, explica a advogada que diariamente trabalha com mulheres em situação de violência.

“No caso de Petito, comentários do policial sobre como Gaby poderia se acalmar, a exemplo do que sua própria esposa fazia quando estava nervosa, entre outras insinuações de que a jovem estava emocionalmente desequilibrada, pode ter sido crucial em desencorajar a jovem e validar as ações de Brian”, comenta. “E mesmo quando há o acolhimento da vítima por parte da polícia, a demora na tramitação dos inquéritos policiais instaurados sobre violência doméstica, que demoram anos para terem andamento por parte das delegacias, ainda que especializadas, também contribuem para a dificuldade em mitigarmos o problema, finaliza.

No cenário brasileiro, a melhoria da legislação, com o decreto de 2023 ajuda, mas precisa ser acompanhada de uma mudança sistêmica no funcionamento dos órgãos, em especial garantindo eficiência e celeridade nos procedimentos, que garantam o que está escrito e o cumprimento da lei já vigente.