O panorama linguístico dos povos indígenas no Brasil acabou de ganhar um novo capítulo, com dados que surpreendem, desafiam e instigam a reflexão sobre políticas para a diversidade cultural. Segundo o Censo Demográfico 2022, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de brasileiros que usam línguas indígenas como meio de comunicação em casa saltou de 293.853, em 2010, para 433.980 pessoas com cinco anos ou mais, um aumento de 47,7% em apenas doze anos. Se considerados os falantes a partir dos dois anos de idade, o total sobe para 474.856, a maioria vivendo em terras indígenas, como revela uma análise inédita feita com base nos microdados do levantamento.
O caminho inverso à extinção — tema tão recorrente nos discursos sobre diversidade linguística — surpreende justamente em um país onde quase metade das cerca de 180 línguas indígenas ainda existentes pode desaparecer nas próximas décadas, caso não haja esforços sistemáticos para sua preservação. Mas, para além da contagem de idiomas, o crescimento do número de falantes aponta para dinâmicas ainda pouco exploradas no debate público: a resistência cotidiana das famílias, comunidades e novos arranjos de vida em centros urbanos. O número de indígenas que falam suas línguas fora das terras demarcadas mais que dobrou no período, passando de 44.590 para 96.685, evidenciando que o idioma materno não é apenas uma marcas de território, mas também de identidade em trânsito.
A diversidade também se traduz em números: 295 línguas indígenas foram identificadas pelo Censo 2022, contra 274 em 2010 — um acréscimo que reflete tanto o aprimoramento da metodologia quanto o fortalecimento de comunidades que, até então, não tinham suas línguas registradas oficialmente. O Amazonas lidera, com 137.421 falantes, seguido por Mato Grosso do Sul (58.901) e Mato Grosso (42.511). Em todo o país, 1.990 municípios registraram pelo menos um falante de língua indígena com dois anos ou mais, mostrando que a presença desses idiomas se faz notar para além das áreas rurais e tradicionais.
Fernando Damasco, gerente de Territórios Tradicionais e Áreas Protegidas do IBGE, destaca que o mapeamento desses falantes é estratégico para o desenvolvimento de políticas públicas capazes de reconhecer e valorizar a diversidade linguística. “A oficialização das línguas faladas pelos povos indígenas contribui decisivamente para o acesso à cidadania e para o exercício de direitos, uma vez que facilita a tradução dos documentos formais e viabiliza a presença de intérpretes nos órgãos públicos”, afirma. Para ele, conhecer a distribuição dos falantes permite identificar os municípios onde o reconhecimento linguístico deve ser priorizado.
No contexto brasileiro, esse avanço esbarra em uma realidade paradoxal. Apesar de a Constituição reconhecer as formas de expressão como patrimônio imaterial, não há nenhuma língua indígena oficialmente reconhecida em âmbito nacional — situação diferente de países como Paraguai e México, que já estabeleceram idiomas originários como línguas oficiais. A Lei 11.645/2008 busca garantir a inclusão da história e cultura indígena nos currículos escolares, mas sua implementação ainda é tímida e descontínua. O desafio, portanto, não está apenas em contar ou celebrar o aumento de falantes, mas em garantir que esse crescimento seja acompanhado de políticas consistentes de educação, acessibilidade e valorização cultural.
Por trás dos números, há histórias de resistência e ressignificação. Cada língua indígena carrega consigo modos de vida, conhecimentos ancestrais, formas de organização social e relações únicas com o ambiente. A perda de um idioma é comparada à destruição de uma biblioteca inteira de saberes tradicionais. Por isso, iniciativas de documentação, ensino bilíngue, produção de materiais didáticos e apoio à revitalização são fundamentais para que a curva ascendente dos falantes não seja apenas um fenômeno passageiro, mas o início de uma nova etapa na relação do país com sua diversidade.
O Brasil, que já teve entre 1.100 e 1.500 línguas indígenas no período pré-colonial, hoje conta com menos de 300 — sinal de uma devastação histórica, mas também de uma resiliência que insiste em se fazer ouvir. O aumento expressivo do número de falantes de línguas indígenas no último censo pode ser lido como uma janela de esperança: a esperança de que, ao reconhecer e valorizar essa riqueza, o país finalmente dê passos concretos para evitar o silenciamento definitivo de vozes que, por séculos, têm resistido à margem do olhar nacional.

