No contexto de uma crescente onda de censura literária nos Estados Unidos, o clássico “Cem Anos de Solidão”, do Nobel colombiano Gabriel García Márquez, foi recentemente banido de escolas públicas norte-americanas. Segundo um relatório da organização PEN America, divulgado no início de outubro, a obra está entre as cerca de quatro mil excluídas das instituições de ensino durante o ano letivo de 2024-2025, sob o argumento de proteção de menores contra “temas não apropriados”, especialmente conteúdo sexual. O documento, intitulado “A normalização da proibição do livro”, destaca que a censura no sistema educacional tornou-se uma prática sistemática e coordenada em todo o país, com 6.870 casos registrados em 23 estados e 87 distritos escolares em apenas um ano. Desde 2021, mais de 22.800 restrições ocorreram em 45 estados, incluindo proibições totais, limitações por série ou até exigências de autorização especial para acesso a determinados textos.
A decisão sobre “Cem Anos de Solidão” ocorre em um cenário político marcado por intensa polarização e por iniciativas de grupos conservadores e autoridades públicas para retirar das escolas obras que supostamente transmitem “ideologias antiamericanas, subversivas, prejudiciais e falsas”. Sob a administração do presidente Donald Trump em 2025, o governo federal passou a ser apontado como um novo “vetor” nessa campanha ideológica, ameaçando cortar financiamento de escolas que não se adequem à linha conservadora definida no discurso oficial. Estados como Flórida, Texas, Tennessee e Pensilvânia lideram o ranking de livros removidos, mas há alertas de que o movimento pode se espalhar para outros, como Michigan e Minnesota.
A proibição de clássicos latino-americanos como “Cem Anos de Solidão” e “O Amor nos Tempos do Cólera”, ambos de García Márquez, além de “A Casa dos Espíritos”, de Isabel Allende, reforça o perfil ideológico da campanha. Essas obras trazem à tona questões como regimes autoritários, violência política e crítica social, aspectos históricos da América Latina que muitas vezes envolvem uma reflexão sobre o papel dos Estados Unidos em intervenções internacionais. No entanto, o critério oficial para o banimento segue priorizando o combate a supostos conteúdos impróprios para crianças e adolescentes.
Apesar do discurso oficial de proteção, especialistas e entidades de defesa da liberdade de expressão alertam que o cerceamento ao acesso à literatura diversa e crítica compromete o direito dos estudantes a uma educação ampla, plural e informada. Segundo o jornalista Jamil Chade, há um padrão claro de perseguição a autores negros, mulheres, membros da comunidade LGBTQIAPN+ e obras que abordam racismo, gênero e história, principalmente quando questionam narrativas tradicionais. Com isso, tanto estudantes quanto escritores são prejudicados: os primeiros, privados do contato com outras realidades e pontos de vista; os segundos, silenciados por motivos políticos e morais.
A censura de “Cem Anos de Solidão” ilustra uma crise sem precedentes no sistema educacional norte-americano, que enfrenta uma escalada de censura motivada por interesses ideológicos e morais. A obra-prima de García Márquez, reconhecida mundialmente e presente em currículos ao redor do planeta por seu valor literário e histórico, torna-se agora símbolo de um conflito que vai muito além das controvérsias sobre conteúdo sexual, envolvendo batalhas pela memória, pela diversidade de pensamento e pela liberdade intelectual no país que historicamente se apresentou como bastião desses valores.
