Por décadas, o cinema brasileiro relegou ao silêncio as vozes e histórias mais urgentes e necessárias, especialmente as das mulheres negras. O apagamento histórico e as dificuldades estruturais de financiamento e exibição dificultaram o acesso dessas cineastas a espaços e festivais, criando um cenário de invisibilidade persistente. Contra essa realidade, duas protagonistas se destacam como agentes de mudança decisivos: Edileuza Penha de Souza e Camila de Moraes.
Edileuza Penha de Souza, cineasta, professora e pesquisadora, tem sido uma referência fundamental no debate sobre negritude, audiovisual e educação. Sua extensa obra — que inclui a série “Negritude, Cinema e Educação” — articula estética, política e formação crítica e está profundamente ligada à retomada da figura pioneira de Adelia Sampaio, a primeira cineasta negra do Brasil, que foi praticamente ignorada nos estudos acadêmicos até a década de 2010. Em 2014, Edileuza idealizou a Mostra Adélia Sampaio e o primeiro Encontro Nacional de Cineastas Negras, iniciativas que procuraram combater o silêncio institucionalizado e reconhecer o protagonismo feminino negro no cinema, algo inédito até então. Sua pesquisa descobriu a trajetória de Sampaio, que escreveu roteiros desde 1974, dirigiu filmes durante o Cinema Novo e produziu mais de 70 filmes, mas nunca recebeu o devido reconhecimento. Edileuza destaca que a luta pelo audiovisual negro é parte de um movimento maior por direitos básicos como saúde, saneamento e educação, ressaltando a importância da coletividade e da formação de público para essa transformação.
Camila de Moraes, por sua vez, construiu uma trajetória emblemática ao desafiar a indústria tradicional com produções independentes, entre elas o documentário “O Caso do Homem Errado”, que aborda o assassinato de Júlio César por policiais em Porto Alegre. Sem acesso a editais oficiais, Camila mobilizou financiamento coletivo e criou a Borboletas Filmes, distribuidora negra e independente que se tornou crucial para a circulação do cinema negro no Brasil. Ela também implementou o Circuito Filmes que Voam, promovendo a exibição de filmes nacionais em Salvador, revelando um público cativo ignorado pelos circuitos oficiais. Camila aponta para a urgência da revisão dos critérios de financiamento e distribuição no país, ressaltando que, sem acesso à exposição pública, a produção não se traduz em efetiva visibilidade e impacto cultural.
Ambas as cineastas compreendem o cinema como um direito, uma forma de reparação histórica e uma necessidade política. Elas criam redes de apoio e alternativas no setor audiovisual para que novas gerações de cineastas negras tenham menos barreiras e mais espaços de expressão. Suas trajetórias demonstram que o futuro do cinema negro brasileiro já é uma realidade, marcada pela coletividade, resistência e expansão.
Dados oficiais reforçam essa urgência: uma pesquisa da Ancine em 2016 revelou que apenas 2% dos diretores de filmes lançados comercialmente no Brasil eram negros, enquanto um estudo do GEMAA/Uerj em 2019 mostrou que, entre 142 longas, apenas um fora dirigido por uma mulher negra. O protagonismo negro em filmes brasileiros raramente ultrapassa 1%, evidenciando a desproporção histórica enfrentada.
Em meio a essa conjuntura, o trabalho conjunto de Edileuza Penha de Souza e Camila de Moraes representa um marco para o cinema brasileiro, iluminando vozes há muito silenciadas e construindo não só novas narrativas, mas também infraestruturas que prometem mudar para sempre o cenário audiovisual nacional. Suas histórias comprovam que ascender no cinema negro feminino exige não apenas talento, mas também coragem para romper com estruturas excludentes e inventar novos caminhos.

