A Missa fúnebre de um partido político
Na semana passada, a 17ª convenção nacional do PSDB aprovou sua união com o Podemos, um movimento que já era discutido nos corredores de Brasília há muitos meses. Dessa forma, os dirigentes das duas facções buscam unir forças, de modo a obter mais recursos do Fundo Partidário e um maior tempo de rádio e TV. Sua meta é clara: aumentar as chances de eleger uma bancada robusta nas eleições do ano que vem, numa aposta de triunfo do autoproclamado “centro democrático”. Fala-se, também, em uma possível federação com o MDB, cujo objetivo é exatamente o mesmo: dar musculatura a um partido cada vez mais inexpressivo aos olhos das massas populares.
Trata-se de mais um capítulo no longo processo de definhamento de um partido que, em épocas passadas, dava os ares da graça em Brasília, chegando a disputar, com o Partido dos Trabalhadores (PT), pela primazia do comando presidencial.
A essa altura, para os mais jovens, deve parecer estranha a relevância dada por mim ao velório do tucanato. Na verdade, o PSDB foi a face polida e bem-comportada da classe dominante no pós-ditadura (1964-1985). Àquela altura, isto é, na década de 1990, a descendência funesta da Arena perdera apelo popular. E não era de se espantar: frente aos militares trogloditas, Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), o charmoso sociólogo e ministro responsável pelo exitoso Plano Real, apresentava-se como um refinado intelectual paulista. FHC era, sem dúvidas, a face que a burguesia queria vender ao resto do mundo, após o conturbado mandato de Collor (1990-1992) e a transição liderada por Itamar (1992-1995).
No entanto, os dias áureos do PSDB estão relegados aos livros de História, pois, como bem disse seu presidente atual, o ex-governador Marconi Perillo, “o ideal seria seguirmos solo, mas ficamos pequenos”. Realmente, os sinais da risível pequenez tucana estão por todo lado.
A recente despedida dos governadores de Pernambuco e Rio Grande do Sul, Raquel Lyra e Eduardo Leite — dois nomes cotados para disputar o Palácio do Planalto em eleições futuras —, foi mais um duro golpe para esse partido, que, em épocas passadas, esteve à frente de mandatos em diversos estados brasileiros, como São Paulo, Minas Gerais, Ceará etc. De fato, Fernando Henrique, o maior cacique tucano, foi a única liderança do país que ganhou uma eleição presidencial no 1º turno, conseguindo repetir a mesma façanha quatro anos depois. Nem mesmo Lula conseguiu igualar esse feito. Além disso, nas quatro eleições gerais seguintes, o PSDB esteve em todas as disputas de 2º turno, conseguindo obter, em 2014, mais de 51 milhões de votos, seu melhor resultado na história da Nova República. Por fim, em 2016, os tucanos alcançaram sua vitória derradeira: 799 prefeitos e prefeitas eleitos nacionalmente.
Porém, tal como nos ensina a sabedoria popular, a vida dá voltas.
No momento em que a crise econômica estrangulou a sociedade brasileira (2015-2016), sendo, aliás, aprofundada pela instabilidade sociopolítica provocada pelas Jornadas de Junho, as bases sociais que compunham a direita se radicalizaram. À época, percebeu-se que o PT perdera o protagonismo nos movimentos de rua, ao mesmo tempo em que o governo Dilma (2011-2016) via sua popularidade derreter em questão de semanas. Contudo, o golpe mais duro veio de uma controversa operação policial que marcaria aquela década: a Lava Jato; responsável por desgastar a imagem da esquerda aos olhos das classes médias empobrecidas pela crise sistêmica que chacoalhava as estruturas do nosso frágil tecido social. Iniciava-se, assim, o período mais sombrio de Lula e seu partido, cujo pior momento seria a sua prisão em abril de 2018; houve até quem cogitasse — com boas razões — a morte política de ambos. Ainda assim, o velho operário sobreviveria aos ataques e à prisão, saindo do encarceramento para se candidatar, disputar e vencer as eleições de 2022, tornando-se presidente do Brasil pela terceira vez.
Entretanto, o PSDB não se mostraria capaz de resistir ao maremoto do discurso anticorrupção. Pelo contrário, as revelações de que Aécio teria tido, em 2017, conversas suspeitas com o empresário Joesley Batista, ajudou a enterrar de vez as ambições presidenciais do último cacique tucano. De lá pra cá, o partido e suas lideranças mergulharam num lamaçal que nem mesmo a vitória de Doria seria capaz de resgatar. Nesse meio-tempo, nomes históricos da sigla, como Tasso Jereissati, José Serra, Geraldo Alckmin, Aloysio Nunes e Antônio Anastasia, perderam protagonismo, abandonaram o ninho ou simplesmente caíram no ostracismo. Pouco a pouco, ficava mais claro que a mancha da corrupção envolvia praticamente todo o espectro político, ou seja, da esquerda à direita, do progressismo ao conservadorismo, do governo à oposição.
Porém, o golpe final chegaria de onde menos se esperava. Pois, para a ruína do tucanato, renasceu, em torno do clã Bolsonaro, uma extrema-direita que não era vista desde os tempos ditatoriais. De fato, em poucos anos, formou-se um movimento alinhado à ascensão de uma extrema-direita mundial e abertamente contrário ao espírito “cosmopolita”, “democrático” e “civilizado” de FHC, pois se estruturava no ódio à esquerda, ao trabalhador, à mulher, aos negros, à comunidade LGBTQIAPN etc. Esse movimento extremista, que nos habituamos a chamar de bolsonarismo, aniquilou definitivamente a direita tucana, contribuindo para transformar o noticiário político num ringue de golpes baixos e, ao mesmo tempo, num show de horrores. Desde então, as falas obscenas de Bolsonaro e seus seguidores viraram parte do cotidiano, seja em frente às câmeras, seja nas próprias redes sociais; aquilo que, em outras épocas, seria visto como impensável ou inaceitável, agora é banal, corriqueiro. Contudo, a despeito de sua linguagem chula e personalidade detestável, o ex-capitão segue desfrutando uma sólida popularidade nos círculos reacionários, sendo capaz de arregimentar dezenas de milhares de apoiadores a qualquer momento, um feito que nenhuma liderança brasileira é capaz de igualar, excetuando-se o próprio Lula.
Para uma “nova direita” que rasteja pelos meandros das redes sociais, das fake news, do trumpismo, o PSDB virou peça de museu, antiquado demais para as novas disputas de uma república com pés de barro. Na realidade, a conjuntura presente — inflamada por uma crise sistêmica que se agrava a despeito de quem ocupa a cadeira presidencial — demanda das classes dominantes uma direita que destile ódio aos trabalhadores, às mulheres, às minorias e às esquerdas. Para esse agrupamento fascista, não há outra solução que não seja “metralhar a petezada”, isto é, pôr toda culpa sobre os ombros dos “artistas pervertidos”, “professores esquerdistas”, “universitários vagabundos”, “feministas mal amadas”… trata-se de um lamaçal discursivo, um espetáculo de ideias vexatórias, no qual somente o esgoto da Ditadura poderia germinar algo de novo. Nesse sentido, o bolsonarismo é o sintoma mórbido de um sistema político em decomposição.
Ora, seria pretensioso buscar resumir os fatos políticos dos últimos anos em um texto de poucas páginas. Nesse esforço em forma de análise escrita, tentei delinear um esboço, um painel simplificado daquilo que vimos acontecer em tão pouco tempo, de tal maneira que muitos elementos centrais à compreensão da nossa realidade precisaram ser deixados de lado. Mesmo assim, com a simbólica saída dos principais governadores tucanos, Raquel Lyra e Eduardo Leite, podemos dizer que o PSDB está com os dois pés na vala, prestes a ser enterrado de uma vez por todas. Afinal de contas, os dois mandatários preferiram se livrar do partido ao qual pertenciam há décadas, para aderir à legenda controlada por Gilberto Kassab: o Partido Social Democrático (PSD). Fundado em 2011, o PSD é a sigla que detém o maior número de senadores e prefeitos, assim como uma das principais forças partidárias na Câmara dos Deputados.
No futuro, quando os historiadores se dispuserem a estudar a política brasileira desses tempos incertos, eles certamente terão de se ocupar em analisar a figura de Gilberto Kassab. Personalidade sorrateira e camaleônica, Kassab é o epítome do Centrão, o famigerado establishment político brasileiro; ele foi ministro de Dilma, mas não vacilou em apoiar seu impeachment, aceitando, logo em seguida, um ministério no governo Temer (2016-2019); em São Paulo, trabalhou para Dória (2019-2022), porém, agora, está ao lado de Tarcísio de Freitas, ex-ministro da gestão Bolsonaro (2019-2023). Ao longo dos anos, Gilberto Kassab foi vice-prefeito, prefeito e deputado federal por São Paulo, o maior colégio eleitoral do país, de modo que não seria injusto tê-lo como um carreirista experimentado, um arrivista bem-sucedido, que conhece os corredores palacianos como poucos, pois sabe dançar conforme a música, sabe se ajustar de acordo com a oportunidade que lhe aparece. Kassab não formulou nenhuma ideia que mereça destaque, nem nos presenteou com alguma conquista de relevo; nada nele nos vêm à tona, exceto seu triunfo pessoal em um sistema carcomido pela corrupção, velhacaria e mediocridade. Ainda assim, não devemos nos espantar que ele lidere um dos maiores partidos brasileiros, um partido capaz de influenciar o resultado das eleições que se avizinham. Afinal, o PSD é a expressão mais bem-acabada do atual sistema político nacional.
Hoje, o partido capitaneado por Kassab é o farol que atrai mais e mais tucanos para fora do ninho. Na Paraíba, estado marcado pela presença do PSDB, dois dos principais nomes do clã Cunha Lima, Cássio e Pedro, transferiram-se recentemente para o PSD. Espera-se que Pedro dispute, pela segunda vez, o mandato de governador. Para tanto, o ex-deputado recebeu o cargo de presidente estadual da legenda, reunindo em torno de si diversos nomes da oposição ao governo de João Azevedo (PSB), tais como Veneziano (MDB), Ruy Carneiro (Podemos) e Efraim Filho (União Brasil). Se a sua escolha foi um tiro no pé, o futuro nos dirá.
A essa altura, a revoada dos tucanos sacramenta o fim de uma era para a direita nacional. A época em que a centro-esquerda se alternava no governo com os tucanos se esgotou definitivamente, pois, aos olhos das classes dominantes, o PSDB tornou-se bucha de canhão, um instrumento ineficiente para a conservação do seu poder sobre as massas em um contexto de crise social aguda. E, ainda que a fusão com o Podemos traga de volta alguns milhares de votos e meia dúzia de assentos no Congresso, o PSDB jamais terá de volta o protagonismo, porque a verdadeira Política não se subordina a fundo partidário, tempo de televisão ou marketing eleitoral.
A verdadeira Política transcende os monumentos de Brasília, fazendo-se presente no dia a dia, na realidade concreta de cada pessoa que luta para sobreviver em um país espoliado desde a sua origem. Ao contrário das vulgaridades e cretinices presentes no cotidiano da politicagem rebaixada, a verdadeira Política se dá na luta de classes, no embate ferrenho entre capitalistas e trabalhadores, cujos interesses continuam sendo diametralmente antagônicos. Nessa violenta disputa pelas mentes e corações, o tucanato não é nada mais que uma relíquia farsesca do passado.
Este texto foi publicado originalmente em A Forma da Escrita
Daniel Viana de Sousa
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