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A Vida Depois do Acolhimento é tema do Caminhos da Reportagem

No Brasil, mais de 35 mil crianças e adolescentes vivem atualmente em cerca de 8 mil instituições de acolhimento, longe de suas famílias de origem. Essas medidas extremas só são adotadas quando a Justiça identifica graves violações de direitos, como abandono, violência, maus-tratos ou abuso sexual – situações que, em tese, deveriam ser evitadas por políticas públicas de proteção à infância, mas que, por uma série de falhas, exigem a intervenção do Estado. O acolhimento institucional é, então, um recorte de um problema social muito maior: a incapacidade, temporária ou permanente, de famílias e do próprio poder público de garantir a segurança e o desenvolvimento saudável dessas crianças.

A série de reportagens Caminhos da Reportagem, da TV Brasil, lança luz sobre um aspecto pouco discutido: o que acontece quando esses jovens completam 18 anos e, de uma hora para outra, precisam deixar a instituição para enfrentar a vida adulta sem apoio familiar, afetivo, e muitas vezes, também financeiro. O episódio, exibido em outubro de 2025, apresenta histórias reais como a de Valéria Damasceno, que foi acolhida ainda bebê, após ser abandonada por pais usuários de drogas. Mesmo após diversas tentativas frustradas de reintegração familiar, Valéria hoje busca reconstruir a própria história ao lado do irmão, sem nunca ter experimentado a estabilidade e o afeto de um lar tradicional.

O acolhimento no Brasil é regulamentado como medida provisória e excepcional. Quando uma criança chega a uma instituição, inicia-se um processo complexo, que envolve o Conselho Tutelar, a Vara da Infância, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). O principal objetivo é tentar voltar essa criança para sua família – pai, mãe, avós, tios ou até irmãos mais velhos – desde que removidas as causas que motivaram o afastamento. O que se espera é que o Estado consiga, junto com a rede socioassistencial, fortalecer essas famílias, evitando a ruptura definitiva dos laços.

Mas, quando a reintegração familiar não é possível, abre-se o caminho para a adoção. No entanto, os números mostram que a adoção segue sendo exceção: das quase 6 mil crianças e adolescentes em processo de adoção em outubro de 2025, menos de 10% encontraram uma nova família nos últimos seis anos. O tempo de espera, a falta de pretendentes dispostos a acolher crianças e adolescentes maiores de 12 anos, irmãos ou com características étnicas e de saúde que destoam do “padrão” esperado pelos adotantes, são alguns dos principais entraves para a efetivação do direito à convivência familiar.

O acolhimento institucional, portanto, acaba se tornando, na prática, o principal destino desses jovens. E, quando atingem a maioridade, a saída abrupta das instituições pode significar isolamento, insegurança e até risco de cair em situações de violência ou exploração. Raone, de 19 anos, por exemplo, foi acolhido após ser agredido pela própria mãe, passou anos em uma casa de acolhimento e, ao completar 18, teve que lidar com a vida adulta sem referências familiares. Graças a um projeto chamado Centelha, que acompanha jovens em transição para a vida independente, ele conseguiu emprego em uma barbearia, mora sozinho e alimenta o sonho de viver de música e poesia.

Foi diante desse cenário preocupante que o Poder Judiciário lançou o programa Novos Caminhos, visando garantir oportunidades, cuidado e proteção para quem precisa sair do acolhimento institucional. A iniciativa busca, ainda, estimular políticas de inserção no mercado de trabalho, capacitação profissional e até a articulação com universidades para facilitar o acesso ao ensino superior. O desafio, porém, é colossal: garantir que essas trajetórias interrompidas não se transformem em ciclos permanentes de exclusão.

Mas há alternativas ao acolhimento institucional. O programa Família Acolhedora propõe que o abrigo temporário seja em uma casa, com uma família, e não em uma instituição. O objetivo é oferecer afeto, estabilidade e um ambiente familiar, mesmo que por um período curto, enquanto se busca a reintegração familiar ou a adoção. Sirlete de Paula Moreira, por exemplo, acolheu dois irmãos pequenos e, depois, um adolescente de 12 anos. Ela relata que, apesar do tempo limitado, a experiência é intensa e transformadora – tanto para os acolhidos quanto para a família acolhedora. Ainda assim, o acolhimento familiar segue sendo pouco conhecido e utilizado no país, respondendo por menos de 7% dos casos, apesar do discurso oficial de que deveria ser prioridade.

O que essas histórias revelam é a urgência de uma política pública séria, intersetorial e desburocratizada, que olhe para cada criança e adolescente em suas particularidades. O acolhimento institucional, apesar dos avanços na qualidade e no número de vagas, ainda é um refúgio imperfeito, incapaz de suprir a falta de um lar. A adoção, por sua vez, precisa ser revista para se tornar realmente inclusiva e ágil. E programas como Família Acolhedora e Centelha mostram que, com apoio, esses jovens podem sonhar e conquistar um futuro diferente.

Quando se fala em acolhimento, portanto, não se trata apenas de abrigar, mas de devolver o direito de crescer, sonhar e se desenvolver em ambiente seguro, estável e afetivo. O desafio segue sendo, para o Estado e para toda a sociedade, transformar o acolhimento em ponte – e nunca em destino final.

Fonte: Agência Brasil – Matéria Original (Clique para ler)