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Ação no RJ é cortina de fumaça e expõe população, dizem especialistas

## Reportagem: Megaoperação policial no Rio expõe falhas do Estado e coloca população no centro do caos

O sol mal havia nascido quando mais de 150 mil moradores dos complexos da Penha e do Alemão acordaram sob o som de tiros e explosões. Foram horas intermináveis de angústia: casas atingidas, escolas fechadas, ruas vazias e o pavor de morar em territórios controlados por forças rivalizadas. A megaoperação policial batizada como Operação Contenção mobilizou cerca de 2.500 policiais civis e militares, representando o maior contingente dos últimos 15 anos no estado, e se estendeu por toda a capital fluminense, paralisando o comércio, obrigando a suspensão das aulas e inviabilizando o funcionamento de postos de saúde.

O saldo foi devastador: pelo menos 64 pessoas mortas – entre elas, quatro policiais –, 81 presos, 93 fuzis apreendidos, além de armas de menor porte e granadas. A Avenida Brasil, a Linha Amarela, a Linha Vermelha e outras vias expressas da cidade foram bloqueadas, formando um paredão de caos que afetou milhares de trabalhadores, estudantes e ambulantes. Também houve registros de represálias do crime organizado em outras comunidades, criando uma onda de violência que ultrapassou os limites planejados da operação. Mesmo após o fim do primeiro dia, a certeza é de que o fogo cruzado deixou marcas profundas e ainda há muito medo de que a situação volte a escalar a qualquer momento.

Segundo o governo do estado, a ação visava conter o avanço do Comando Vermelho, facção criminosa que, de acordo com estudo recente, já controla mais da metade das áreas sob domínio do crime organizado na região metropolitana do Rio de Janeiro. Apesar do discurso oficial de “contenção” e “fortalecimento da segurança”, especialistas de diferentes áreas do conhecimento apontam para um círculo vicioso de violência e sofrimento desnecessário. Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, José Cláudio Souza Alves explica que operações desta natureza só multiplicam o sofrimento dos mais vulneráveis: “Essa lógica de medir força armada bélica com estruturas do tráfico sempre resultaram em mortes cada vez maiores, em sofrimento cada vez mais intenso, perda de acesso a serviços públicos, perda de mobilidade urbana, os mais frágeis sempre vão sofrer muito mais. A economia é afetada diretamente e o problema nunca foi sequer arranhado”.

Alves acrescenta: “Isso tudo que vocês estão vendo aí hoje, arrebentando no Rio de Janeiro todo, é apenas uma imensa e gigantesca cortina de fumaça, um rolo gigantesco de fumaça cegando a todos. Combater o crime organizado exige outras estratégias, inclusive oferecer oportunidades e qualidade de vida a população em situação de vulnerabilidade”. Para ele, sem alternativas reais de emprego, renda e cidadania, os jovens das periferias seguirão sendo atraídos cada vez mais pelo poder financeiro do tráfico.

No campo tático, acadêmicos da segurança pública criticam também a forma como a operação foi conduzida. Jacqueine Muniz, professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense, classifica a ação de “lambança político-operacional”. “Para colocar 2,5 mil policiais, tem que fazer uma previsão de 7,5 mil a 10 mil policiais, porque tem três turnos de trabalho e escala. Isso quer dizer que para fazer esta operação, […] teve que se retirar o policiamento de 3 milhões a 5 milhões de pessoas na região metropolitana”. Ela frisa que a escala da operação abriu brechas criminais em outras áreas, enquanto populações inteiras ficavam reféns dos confrontos. “De um lado, esquentou-se a chapa numa área crítica, não reduziu a capacidade operacional do crime, por outro, viabilizou a morte de policiais, o ferimento de policiais, de cidadãos sem que isso significasse um avanço sobre o crime organizado”.

O Instituto Fogo Cruzado, especializado em dados de violência armada, foi enfático: “As polícias do Rio começaram o dia com a Operação Contenção e o que se viu foi parte expressiva da população na linha de tiro e uma cidade inteira parada. Este é o planejamento do governo do estado? Operações como essa mostram a incapacidade do governo estadual de fazer política pública de segurança pública”. O instituto reafirma que, para combater o crime organizado, é preciso “atacar fluxos financeiros, investigar lavagem de dinheiro, fortalecer corregedorias independentes e combater a corrupção dentro do Estado”. O diagnóstico aponta para um cenário de repetição histórica: o Rio já viu operações letais como Jacarezinho (28 mortos, em 2021) e Vila Cruzeiro (24 mortos, em 2022), mas estas nunca alteraram o domínio do crime na cidade.

A economia também foi atingida pelo caos. Pequenos lojistas deixaram de abrir suas portas, ambulantes perderam um dia inteiro de renda e famílias pobres, já fragilizadas, tiveram ainda mais dificuldade para acessar alimentos, remédios e serviços básicos. O que a Operação Contenção deixou claro é que a população continua sendo a principal vítima de uma guerra que parece não ter fim. Além do trauma e da dor das famílias enlutadas, o que fica é a sensação de que a violência policial não tem sido capaz de abalar as estruturas do crime organizado, mas, ao contrário, tem amplificado o sofrimento dos mais pobres, reforçando a sensação de abandono e a lógica sanguinária do confronto armado.

O Rio de Janeiro mostra, mais uma vez, que enquanto não houver políticas públicas consistentes de inclusão social, combate à corrupção e investimento em inteligência e investigação, os conflitos armados seguirão tirando vidas e deixando atrás de si apenas fumaça e dor.

Fonte: Agência Brasil – Matéria Original (Clique para ler)