Acolhimento dos africâneres: a seletividade humanitária dos EUA

O recente acolhimento de um grupo de 59 sul-africanos brancos, integrantes da minoria africâner, como refugiados nos Estados Unidos, escancara as contradições e seletividades da política migratória e de direitos humanos do governo americano. Sob o argumento de que esses indivíduos seriam vítimas de perseguição racial na África do Sul, o processo de concessão de refúgio foi acelerado de maneira inédita, com direito a recepção calorosa por autoridades e crianças empunhando bandeiras americanas no aeroporto. A justificativa de “genocídio” contra agricultores brancos foi usada como base, mesmo sendo contestada pelo governo sul-africano e por especialistas independentes, que apontam não haver perseguição sistemática ou violência de Estado contra essa minoria.

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Donald Trump, com o apoio de seu conselheiro Elon Musk – sul-africano de nascimento -, tem promovido a narrativa de que sul-africanos brancos, especialmente os africâneres, estariam sendo perseguidos pela maioria negra no país. Ambos vêm utilizando termos como “genocídio” e “discriminação racial” para descrever a situação dos brancos na África do Sul, alegações que têm sido amplificadas por grupos de direita e nacionalistas brancos tanto nos Estados Unidos quanto internacionalmente.

Trump e Musk, que nasceu na África do Sul, têm se manifestado sobre o que alegam ser perseguição aos sul-africanos brancos.
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No entanto, essas afirmações são amplamente contestadas por autoridades sul-africanas e especialistas internacionais. O presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, classificou essas alegações como uma “narrativa completamente falsa”, ressaltando que não há perseguição sistemática ou violência de Estado contra a minoria branca no país. O governo sul-africano destaca que, embora haja crimes violentos – um problema endêmico e que afeta todas as comunidades -, não existe nenhuma política de expropriação em massa de terras nem ataques direcionados por motivos raciais contra os brancos.

Dados socioeconômicos reforçam esse aspecto: apesar de representarem apenas cerca de 7 a 8% da população, os brancos – em sua maioria africâneres – ainda detêm aproximadamente 73% das terras privadas e ocupam 62% dos cargos de alta gestão no setor corporativo, enquanto negros ocupam apenas 17% dessas posições. A desigualdade extrema é uma herança direta do regime do apartheid, que terminou oficialmente há 30 anos, mas cujos efeitos ainda se fazem sentir na distribuição de terras, riqueza e oportunidades. A maioria negra segue enfrentando taxas de desemprego muito superiores, acesso precário à terra e à educação, e condições de vida marcadas pela pobreza e exclusão social.

O contraste fica ainda mais gritante quando se observa que, ao mesmo tempo, milhares de refugiados negros e pessoas vindas de zonas de conflito têm seus pedidos de asilo negados pelos EUA, numa política migratória marcada por barreiras crescentes e deportações sumárias. A ONG Human Rights Watch classificou o acolhimento dos africâneres como uma “cruel distorção racial”, evidenciando que a prioridade dada a esse grupo branco não se estende a populações realmente ameaçadas por guerras e perseguições em larga escala.

Tragédias humanitárias ignoradas: Congo e Sudão

Enquanto os africâneres são recebidos como refugiados, tragédias humanitárias de proporções devastadoras assolam países africanos como a República Democrática do Congo e o Sudão, sem que haja mobilização internacional e muito menos norte-americana equivalente para acolher suas vítimas.

Na RDC, a escalada da violência armada nas províncias de Kivu do Norte e Kivu do Sul já provocou mais de 400 mil deslocados internos só em 2025, com relatos de assassinatos, violência sexual, recrutamento forçado e necessidades humanitárias críticas, como falta de abrigo, comida e assistência médica. Mais de 7 mil pessoas morreram desde janeiro, muitas delas civis, em meio ao avanço de grupos rebeldes e à omissão da comunidade internacional.

No Sudão, a guerra civil entre o Exército e as Forças de Apoio Rápido mergulhou o país naquilo que a ONU e ONGs classificam como “a pior crise humanitária do mundo” no momento. São mais de 13 milhões de deslocados, 25 milhões enfrentando fome e milhares de mortos em ataques deliberados a civis, especialmente em Darfur. O drama sudanês, porém, não mobiliza corredores humanitários, nem políticas de acolhimento em países ricos.

A cruzada anti-imigrante dos EUA: o caso Kilmar Abrego Garcia

Com a chegada de Trump ao poder, os Estados Unidos intensificam sua cruzada contra imigrantes, promovendo deportações em massa, inclusive de pessoas com situação regular. O caso de Kilmar Abrego Garcia, deportado por engano para El Salvador e enviado a uma prisão de segurança máxima, mesmo tendo autorização para trabalhar nos EUA, é emblemático. Apesar de decisões judiciais, inclusive da Suprema Corte, ordenando que o governo facilitasse e efetivasse seu retorno, a administração Trump se recusou a cumprir integralmente as ordens, alegando limitações de autoridade e jogando a responsabilidade para o governo salvadorenho, que também se esquivou da responsabilidade.

O desprezo do governo americano por decisões judiciais e direitos fundamentais de imigrantes sul-americanos e pobres parece que se tornou comum na “terra da liberdade”, ao mesmo tempo em que acelera processos de refúgio para sul-africanos brancos.

Gaza: silêncio e seletividade diante de genocídio

Apesar de mais de 50 mil mortos, a maioria mulheres e crianças, e de decisões judiciais internacionais apontando genocídio, o governo americano se recusa a reconhecer a gravidade dos crimes cometidos por Israel. O presidente Joe Biden negava que havia um genocídio em curso, e Trump faz o mesmo, ambos mantendo apoio incondicional a Israel e defendendo até mesmo o bloqueio de ajuda humanitária à população palestina. Não há qualquer iniciativa para acolher refugiados palestinos, mesmo diante da catástrofe humanitária e da fome.

Herança colonial: os africâneres e o apartheid

É fundamental lembrar que os africâneres, hoje acolhidos como “refugiados”, são herdeiros diretos dos colonizadores e principais responsáveis pelo regime de apartheid, um dos sistemas mais brutais de segregação racial do século XX. Durante o apartheid, a minoria branca, liderada pelos africâneres, detinha todos os privilégios, enquanto a maioria negra era submetida à opressão, violência e privação de direitos básicos.

Mesmo após o fim oficial do apartheid em 1994, a estrutura de dominação persiste: os brancos, menos de 10% da população, ainda controlam cerca de 72% das terras agrícolas e concentram a maior parte da riqueza nacional. A desigualdade é uma herança direta do colonialismo inglês e do regime racista imposto pelos ancestrais dos atuais “refugiados” africâneres.

A hipocrisia dos Estados Unidos se revela de forma cristalina e vergonhosa ao perseguir implacavelmente imigrantes latinos e africanos – sobretudo negros – mesmo quando estes estão amparados por leis migratórias e decisões judiciais. Paralelamente, o governo americano se recusa a reconhecer o genocídio em curso na Faixa de Gaza, onde Israel emprega a fome como arma de guerra, civis são intencionalmente alvejados, há deslocamento forçado em massa e a destruição sistemática de infraestrutura essencial. Esses atos configuram, sob a ótica do direito internacional, graves violações das Convenções de Genebra e do Estatuto de Roma, gabaritando a definição de crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

A Carta das Nações Unidas, em seu preâmbulo, consagra o compromisso dos Estados-membros em “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra” e promover a justiça, a dignidade humana e os direitos fundamentais. A Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, aprovada em 1948, estabelece que o genocídio – entendido como atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso – é crime contra o direito internacional, devendo ser prevenido e punido por todos os Estados.

O bloqueio e o uso deliberado da fome como método de guerra, conforme ocorre em Gaza, são expressamente proibidos pelo direito internacional humanitário. A Resolução 2417 do Conselho de Segurança da ONU condena veementemente a privação de alimentos e água a civis como método de guerra, classificando tal prática como punição coletiva e, portanto, ilegal. Além disso, ataques sistemáticos a civis, destruição de hospitais, escolas e infraestruturas essenciais, bem como o impedimento de acesso à ajuda humanitária, são tipificados como crimes de guerra e crimes contra a humanidade pelas Convenções de Genebra e pelo Estatuto de Roma.

Apesar dessas violações estarem amplamente documentadas e de o Conselho de Direitos Humanos da ONU ter aprovado resolução exigindo a responsabilização de Israel por possíveis crimes de guerra e crimes contra a humanidade em Gaza, os Estados Unidos não apenas se opõem a essas iniciativas, como bloqueiam ações efetivas no âmbito internacional, inclusive impondo sanções aos membros do TIP (Tribunal Penal Internacional) por cumprir seu dever, investigando, julgando e punindo tais crimes e seus responsáveis, e, claro, jamais cogitaram oferecer refúgio aos palestinos vítimas desse conflito.