Na noite desta sexta-feira (7), a escritora Ana Maria Gonçalves tomou posse na cadeira número 33 da Academia Brasileira de Letras (ABL), no Rio de Janeiro, tornando-se a primeira mulher negra eleita para o quadro de imortais da instituição. Em um discurso emocionante, ela iniciou sua fala com uma saudação às suas raízes e à ancestralidade: “Benção, mãe. Benção, pai.” O momento foi marcado por palmas calorosas e pela presença de personalidades do mundo literário, artístico e político.
Ana Maria Gonçalves é autora do romance histórico “Um defeito de cor”, obra fundamental para a compreensão da história brasileira e da experiência negra no país. Em seu discurso, a escritora relembrou a trajetória dos antecessores na cadeira 33, destacando o fundador Domício da Gama e o linguista Evanildo Bechara, de quem herdou o posto. Também resgatou a história da exclusão feminina na Academia, lembrando que a não admissão de mulheres foi, inicialmente, um acordo entre cavalheiros, e citou as pioneiras que abriram caminho, como Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Zélia Gattai, Ana Maria Machado, Rosiska Darcy de Oliveira, Fernanda Montenegro, Lilia Schwarcz e Miriam Leitão.
A escritora refletiu sobre a presença negra na ABL, destacando que Domício Proença foi o único negro na Academia durante muito tempo e que a negritude de Machado de Assis foi negada por décadas. Ana Maria também reconheceu o papel das candidaturas de Conceição Evaristo e Ailton Krenak no debate sobre diversidade, afirmando que a discussão em torno da candidatura de Conceição Evaristo, em 2018, contribuiu para que ela estivesse ali hoje. “A discussão em torno da candidatura de Conceição Evaristo contribuiu para que eu esteja aqui hoje. Fez com que a Academia se olhasse no espelho e percebesse o quanto ainda falhava em representar todas as línguas faladas pelo nosso povo”, disse.
Ao encerrar seu discurso, Ana Maria assumiu o compromisso de promover a diversidade na Casa, abrir suas portas ao público e ampliar o empenho na divulgação e promoção da literatura brasileira. “Cá estou eu, 128 anos depois de sua fundação, como a primeira escritora negra eleita para a Academia Brasileira de Letras, falando português e escrevendo a partir de noções de oralidade e escrevivência. Assumo como missão promover a diversidade nesta Casa, abrir suas portas ao público — verdadeiro dono da língua — e ampliar o empenho na divulgação e promoção da literatura brasileira”, afirmou.
A apresentação da nova imortal foi feita por Lilia Schwarcz, que destacou o impacto de “Um defeito de cor” e fez um paralelo entre passado e presente, ao lembrar as recentes operações policiais nas comunidades do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro. “As mães que hoje choram seus filhos nas favelas do Rio são ecos das mulheres que, no tempo da escravidão, também perderam os seus. Ana Maria traz essas vozes para dentro da literatura e, agora, para dentro da Academia”, disse.
A cerimônia contou com a presença de Ana Maria Machado, que entregou o colar acadêmico, e Gilberto Gil, responsável pelo diploma. A comissão de entrada foi formada por Rosiska Darcy de Oliveira, Fernanda Montenegro e Miriam Leitão; e a de saída, por Domício Proença Filho, Geraldo Carneiro e Eduardo Giannetti.
A acadêmica Miriam Leitão destacou o simbolismo da posse de Ana Maria Gonçalves: “Foi em 1977 que a primeira mulher sentou numa cadeira aqui, a Rachel de Queiroz. Eu sou a 12ª e a Ana é a 13ª. É muito pouco tempo na história da Academia. Mas a entrada dela tem uma camada de representatividade fundamental. Ela traz a força da mulher e da literatura negra para dentro desta Casa.” Leitão acrescentou: “A Academia está mudando o que precisa ser mudado e conservando o que precisa ser conservado. Mantém as tradições e se renova. Este é um dia histórico.”
A atriz Regina Casé também falou sobre a posse: “Foi especialmente emocionante por ser a Ana, por ser uma mulher preta. O discurso dela nos lembra o quanto demoramos para ocupar esses espaços. É assustador pensar que só em 1977 uma mulher entrou aqui.”
O ator e escritor Lázaro Ramos afirmou que “Um defeito de cor” é “o livro de sua vida”: “Foi o livro que mais dei de presente. É o primeiro que me provocou sensações físicas — eu chorava, ria, sentia cheiro, textura. A escrita da Ana é muito especial. Hoje é uma noite de celebração e justiça literária.” Para ele, a presença da escritora na ABL representa o amadurecimento do país: “É o Brasil reconhecendo talentos que demoraram a ser reconhecidos. A presença dela aqui é de justiça e diversidade. É o que a Academia merece e precisa.”
Ovacionada quando citada por Ana Maria no discurso, Conceição Evaristo definiu a posse como uma conquista coletiva: “A conquista de Ana é uma conquista que representa todas nós, mulheres negras e escritoras. É como se estivéssemos todas dentro da Academia hoje. Um defeito de cor cobre lacunas que a história deixa. Quando a história silencia, a literatura fala.” Ela também comentou o momento político e social do país: “O que aconteceu no Rio de Janeiro, com tanta violência, mancha novamente a história brasileira de sangue. A literatura não resolve isso na hora, mas é onde podemos imaginar outro destino para o Brasil — um destino sem dor, sem exclusão.”
O também imortal Gilberto Gil resumiu a emoção da noite, exaltando a qualidade do trabalho da escritora: “É alegria e orgulho para a Academia. Ana Maria é uma das grandes artesãs da palavra, e sua escrita traz uma consciência profunda sobre o que é ser negro no Brasil. Ela representa o papel que os negros têm no processo civilizatório brasileiro.”
Após a cerimônia, os convidados participaram de um jantar para 300 pessoas no pátio externo da Academia. O cardápio foi inspirado no livro “Um defeito de cor” e criado pela chef Dilma do Nascimento, conhecida como Dita. “É uma emoção muito grande ser convidada para cozinhar aqui na Academia. Para nós, é um marco — um reconhecimento da África que veio para o Brasil. Baseei o cardápio na trajetória do livro, com pratos africanos e encerrando com as cocadas vendidas pelas personagens em busca da liberdade. Foi um prazer trazer essa história também pela comida”, disse.

