Nos últimos meses, o cenário internacional tem sido marcado por um aumento na pressão sobre o governo de Israel devido a suas ações em Gaza, onde alegações de crimes de guerra e violações de direitos humanos têm gerado uma reação global crescente.
O Tribunal Penal Internacional (TPI), órgão máximo da justiça internacional, emitiu ordens de prisão contra o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e o ex-ministro da Defesa Yoav Gallant, acusados de crimes de guerra, como o bloqueio de ajuda humanitária e o uso da fome como arma de guerra, além do bombardeio indiscriminado de civis, principalmente mulheres e crianças. O TPI também expediu mandados para Mohammed Deif, líder do Hamas que Israel diz já ter matado.
Esse movimento do TPI se dá em um contexto de crescente desconfiança e questionamentos sobre o apoio militar dos Estados Unidos a Israel, especialmente no momento em que o Senado americano rompe com uma tradição de apoio irrestrito a Tel Aviv.
Historicamente, o apoio militar a Israel foi um tema unânime nos Estados Unidos, com uma vasta maioria de senadores, tanto do Partido Democrata quanto do Partido Republicano, both sides of the aisle, como costumam dizer, que apoiam de forma quase unânime a venda de armamentos e fornecimento de assistência militar ao Estado judeu.
É claro que esses políticos americanos , democratas e republicanos, têm razões fortíssimas para um apoio tão unânime e apaixonado. Organizações como a AIPAC se orgulham abertamente de terem gastos milhões de dólares em lobby pró-Israel com políticos americanos que posteriormente aprovam bilhões de dólares em “ajuda” ao Estado de Israel. Ou seja, follow the money.
Apesar disso, parece que houve algum avanço na opinião pública americana com relação as atrocidades cometidas por Israel contra os palestinos tanto na Faixa de Gaza quanto na Cisjordânia ilegalmente ocupada, segundo a ONU. Alguns meses atrás, protestos contra o genocídio em Gaza e contra a política de apoio irrestrito irromperam por todo país.
O debate sobre as vendas de armas a Israel ganhou destaque no Senado, com vários políticos questionando as implicações éticas e legais de continuar a fornecer armas para um país acusado de cometer graves abusos contra os direitos humanos com acusações pendentes de genocídio na Corte Internacional de Justiça e agora com ordem de prisão emitida por crimes de guerra contra seu primeiro-ministro, o mesmo que meses atrás foi ovacionado pelo Congresso americano.
O senador Bernie Sanders, do Oregon, afirmou no plenário do Senado antes da votação que “O governo dos Estados Unidos não pode fornecer armas a países que violam direitos humanos reconhecidos internacionalmente ou bloqueiam ajuda humanitária dos EUA. Isso não é a minha opinião; é o que a lei diz”.
Em uma virada notável, o Senado dos EUA discutiu pela primeira vez em décadas a possibilidade de suspender a venda de certos tipos de munições e armamentos usados em Gaza, obrigando senadores a se posicionarem abertamente sobre a política de apoio irrestrito. O assunto ganhou ainda mais relevância com as ordens de prisão do TPI, que geraram um novo clima de urgência internacional. 124 países, signatários do Estatuto de Roma, incluindo o Brasil, estão agora obrigados a agir conforme as ordens de prisão emitidas, o que coloca o governo dos EUA em uma posição delicada, já que a nação não é parte do tribunal e se recusa a reconhecer sua autoridade na região.
O fracasso da administração Biden no conflito
A administração Biden tem sido duramente criticada por sua postura em relação à ajuda militar a Israel, principalmente porque, apesar das evidências de abusos contra os direitos humanos, os Estados Unidos continuam a enviar ajuda militar.
Organizações de direitos humanos documentaram a destruição de centros de distribuição de alimentos, ataques a hospitais e mortes de jornalistas, enquanto a negação de acesso humanitário se mantém como uma tática usada por Israel no conflito e talvez por isso mesmo os trabalhadores dessas organizações humanitárias tenham se tornado alvo do exército israelense.
O governo dos EUA, por sua vez, tem utilizado argumentos técnicos, muitas vezes questionáveis, para contornar a necessidade de aprovação do Congresso para a venda de determinados armamentos, alimentando ainda mais o ceticismo sobre a transparência e legalidade dessa ajuda.
A administração Biden não conseguiu fazer com que Israel permitisse a entrada de ajuda humanitária dos EUA em Gaza, o que coloca o governo americano em uma posição contraditória, já que, enquanto financia a máquina de guerra israelense, não consegue exercer influência sobre a política de bloqueios e restrições que afetam a população civil palestina, tanto que o norte de Gaza se tornou o “inferno na terra“, segundo a ONU. Isso foi particularmente relevante nas ultimas eleições, que terminaram no último novembro 5, com a vitória do ex-presidente Donald Trump, inclusive no voto popular.
Muitos especialistas apontaram a questão do massacre em Gaza como determinante para a derrota dos democratas nas urnas, já que a inação e complacência do governo, juntamente com o envio extraordinário de recursos e armamentos permitiram que Israel continuasse com as atrocidades contra os palestinos utilizando-se de armamentos e recursos avançados de intelidência americanos.
Essa política de apoio irrestrito decepcionou ou enfureceu boa parte do eleitorado tradicionalmente democrata, como jovens progressistas e a comunidade árabe estadunidense que, ou votaram em Trump (o caso do Michigan é exemplar), ou simplesmente se abstiveram, já que por lá o voto não é obrigatório.
O papel do Tribunal Penal Internacional
A pressão internacional sobre Israel tem se intensificado, especialmente com a emissão das ordens de prisão do TPI. Embora os EUA tenham se posicionado contra o tribunal, ameaçando sanções contra seus juízes e procuradores, o fato é que o TPI tem desempenhado um papel crucial em trazer à tona os abusos cometidos em Gaza. A acusação de genocídio pela Corte Internacional de Justiça, além das ordens de prisão, intensifica a pressão sobre a comunidade internacional para que haja responsabilização.
Além disso, o cerco informativo imposto por Israel, que impede a entrada de jornalistas estrangeiros em Gaza ou os obriga a se submeter à censura do exército israelense, tem contribuído para a opacidade e distorção da realidade no terreno. O assassinato de pelos menos 129 jornalistas, com pelo menos 170 feridos desde o início do conflito, levanta sérias questões sobre a liberdade de imprensa naquela que se autointitula como “a única democracia do Oriente Médio”.
Evolução da opinião pública nos EUA
Dentro dos Estados Unidos, o debate sobre o apoio a Israel está mudando, especialmente entre a comunidade judaica americana. Uma pesquisa recente mostrou que 62% dos judeus americanos apoiam a suspensão da venda de armas ofensivas a Israel como forma de pressionar o governo de Netanyahu a buscar um cessar-fogo e a negociação de um acordo sobre os reféns.
Esse fenômeno reflete uma mudança significativa na opinião pública, principalmente a mais jovem que agora, com acesso a informações reais das condições do terreno, com lives em tempo real das atrocidades veiculadas pelas próprias vítimas e por jornalistas locais em plataformas como o Tiktok, permitiram acesso a um conteúdo antes protegido pela cortina de ferro da grande mídia televisa e de redes sociais americanas, como Twitter, Instagram e Facebook (estes dois últimos, Meta), e começaram então a questionar o papel dos EUA no conflito e a crescente impunidade de Israel.
Embora o Senado dos EUA tenha rejeitado as medidas que visavam proibir a venda de certos armamentos, o fato de que um número crescente de senadores, incluindo figuras como Bernie Sanders, está levantando questões sobre o apoio irrestrito a Israel demonstra que a dinâmica política americana pode estar prestes a mudar. Se o apoio a Israel continuar sendo visto como ética e juridicamente insustentável (sem dúvidas), podemos estar testemunhando o início de uma transformação na política externa dos EUA, com maior ênfase na justiça e na responsabilidade internacional (eu também não acredito nisso).
Contexto brasileiro
O mandados de prisão emitidos pelo TPI podem ser considerados uma vitória diplomática para o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, um dos primeiros líderes mundiais e talvez o primeiro líder de um país com grande relevância diplomática a afirmar, ainda em setembro “que os países que dão sustentação ao discurso do primeiro-ministro Netanyahu precisam começar a fazer um esforço maior para que esse genocídio pare”.
Ao se posicionar abertamente em defesa dos direitos humanos dos povos da palestina e taxar o que a grande mídia chama de “conflito” como genocídio, o presidente brasileiro foi declarado “persona non grata” por Israel e acusado de antissemitismo por Netanyahu e seu aliados do Ocidente, como políticos da extrema-direita tanto americanos como brasileiros. Agora, com a emissão dos mandados de prisão pelo TPI, a solução foi taxar até o Tribunal de antissemita, já que as acusações são as mesmas que o mundo racional vem repetindo há anos.
Se Lula não pode mais visitar Israel por não ser bem vindo, persona non grata, agora é Netanyahu que não pode visitar nenhum dos 124 países signatários do Estatuto de Roma, sob o pena de ser preso e entregue ao Tribunal Penal Internacional.
João Pessoa, 23 de novembro de 2024.
Artigo de opinião escrito por Pedro Galhardo
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal NegoPB