A recomendação aprovada de forma unânime pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) na última terça-feira redesenha o limite de atuação da Polícia Militar em investigações criminais, reforçando um dos princípios basilares do sistema de Segurança Pública brasileiro: à PM cabe a incumbência do policiamento ostensivo e da preservação da ordem pública, não da investigação de crimes comuns – função constitucionalmente reservada à Polícia Civil e à Polícia Federal. O texto orienta magistrados da área criminal a rejeitar pedidos feitos diretamente pela PM, sem a prévia e obrigatória ciência do Ministério Público. Trata-se de uma recomendação de contorno administrativo, que ecoa preocupação institucional com a defesa das prerrogativas de cada órgão.
A medida surge após a Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (ADPESP) alertar o CNJ sobre a reiterada concessão, por juízes paulistas, de mandados de busca e apreensão solicitados diretamente pela Polícia Militar, sem comunicação ao Ministério Público. Casos emblemáticos apresentados à corte administrativa envolvem operações da PM-SP em Bauru, onde um suspeito de roubo foi preso, intervenções na Cracolândia e a invasão de um imóvel sob suspeita de tráfico em São Paulo. Em todos esses episódios, a autorização do Judiciário foi conferida sem o trânsito formal pelo Ministério Público, situação que, segundo a nova orientação, não deverá se repetir – sob pena de descumprimento sistêmico da Constituição e dos marcos processuais penais.
A decisão do CNJ não proíbe integralmente a atuação investigativa da PM, mas restringe-a ao âmbito dos crimes militares, cometidos por seus próprios membros. Para os crimes comuns, o procedimento já estabelecido pela maior corte do país deve ser seguido: o Ministério Público tem de ser ouvido previamente em qualquer pedido de diligência, e a execução de mandados de busca e apreensão deve contar com a participação de agentes da Polícia Judiciária (Civil ou Federal) e do Ministério Público.
O relator do tema no CNJ, conselheiro Pablo Coutinho Barreto, deixou claro durante a sessão que “as atividades de Segurança Pública devem ser desempenhadas sempre em observância aos limites da lei”. Ele sublinhou que a Constituição brasileira não confere legitimidade à Polícia Militar para conduzir investigações criminais ou instaurar inquéritos, reservando essas atribuições de forma exclusiva às polícias Civil e Federal. A decisão do CNJ busca coibir práticas que, conforme apontou o presidente da ADPESP, representam “uma usurpação de competência por parte da Polícia Militar”, com efeitos negativos tanto para a defesa dos direitos fundamentais quanto para a eficiência do sistema de Justiça Criminal.
A normativa do Conselho tem fundamento, além do próprio texto constitucional, em uma decisão de 2009 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Brasil no chamado “caso Escher”. Lembrado pelo CNJ na justificativa da recomendação, o caso envolveu a interceptação telefônica ilegal de cinco militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) pela Polícia Militar do Paraná. Na ocasião, a autorização judicial foi concedida sem embasamento técnico ou ciência do Ministério Público, o que levou à condenação internacional do país por violação de direitos como privacidade, honra, liberdade de associação e garantias judiciais. O episódio expôs não só a fragilidade institucional à época, mas também o risco de repetição de abusos caso atividades de investigação sejam deslocadas dos órgãos legitimados.
A recomendação não representa uma novidade absoluta. Desde 2022, o Supremo Tribunal Federal (STF) já havia validado a legitimidade de pedidos encaminhados pela Polícia Militar, desde que recebam aval prévio do Ministério Público – critério que, segundo o CNJ, não tem sido cumprido de maneira uniforme na prática forense. A medida vale como orientação, mas também como alerta a magistrados e operadores do Direito de que, para além dos limites legais, a defesa do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa dependem da observância rigorosa dos papéis definidos pela ordem constitucional.
O CNJ destaca que a presença ostensiva da PM nas ruas deve ser seu grande trunfo, não a condução de investigações, cuja complexidade, sigilo e formalidade exigem estrutura e expertise reservada à Polícia Judiciária. A intenção é aprimorar a segurança jurídica, evitar sobreposições de competência e garantir que cada órgão cumpra com a missão para a qual foi instituído, dentro do modelo previsto pela Constituição. A recomendação deve servir de referência imediata para todos os juízes criminais do país, na expectativa de evitar novos abusos e reforçar a imprescindível separação de funções para a proteção dos direitos fundamentais.

