A Vila da Barca, localizada no bairro do Telégrafo, no coração de Belém (PA), é uma das maiores e mais antigas comunidades urbanas de palafitas da América Latina. Fundada há mais de um século por ribeirinhos, muitos vindos do interior do Pará, como Cametá, a comunidade ergue suas casas de madeira sobre palafitas para resistir às constantes subidas das marés da baía do Guajará, cenário que moldou a vida local por quase seis décadas para moradores como Cleonice Vera Cruz, aposentada de 77 anos, uma das moradoras mais antigas do bairro.
A partir de uma ocupação inicial precária e improvisada — “uma madeira aqui, outra ali” —, a comunidade cresceu em meio a desafios estruturais e sociais profundos. As casas balançam com o vento e o peso da maré, e em períodos de chuva forte, as residências, com madeiras rachadas, deixam os moradores vulneráveis à infiltração e prejuízos. Um episódio recente que mobilizou a Vila foi o desabamento de uma casa na madrugada de 14 de novembro, que só não trouxe vítimas graças ao alerta dos moradores. Situações como essa revelam a urgência por melhorias no saneamento básico e na infraestrutura, temas que ganham destaque nas conversas cotidianas da Vila, especialmente diante da escassez de água e ausência de sistema de esgoto formal, que ainda expõe a comunidade a riscos ambientais e sanitários.
Apesar dessas adversidades, a Vila da Barca é símbolo vivo de resistência, cultura e forte senso de pertencimento. O bairro é palco de manifestações culturais, como festas juninas, blocos carnavalescos e celebrações religiosas dedicadas à padroeira Nossa Senhora dos Navegantes, que unem gerações em torno da fé e da tradição ribeirinha. Projetos comunitários valorizam a educação e a arte, como a “Barca Literária”, biblioteca itinerante dedicada a alfabetizar crianças da região.
A história da Vila é marcada por episódios de exclusão e invisibilidade social, chegando a ser considerada nos anos 1990 uma área permeada pela violência, quando entrar na comunidade era considerado ato de coragem. Contudo, esse cenário vem sendo transformado pelo protagonismo dos moradores. Eles produzem seu próprio diagnóstico social e atuam diretamente na construção do futuro da Vila, resgatando memórias e valorizando sua identidade cultural, hoje reconhecida pela presença vibrante da juventude e de lideranças locais que buscam fortalecer a comunidade por meio da arte, da memória e da mobilização popular.
A Vila da Barca vivencia hoje uma luta contínua por justiça climática e por políticas públicas efetivas de habitação e saneamento. O governo estadual anunciou recentemente um plano para melhorar o acesso à água e instalar um sistema de esgoto até agosto, em resposta às mobilizações locais. Essa iniciativa chega em meio à realização da COP30 em Belém, momento que potencializa a visibilidade dos desafios enfrentados por comunidades tradicionais urbanas que convivem diariamente com os impactos das mudanças climáticas e da negligência histórica das autoridades.
A moradia em palafitas, tradicional da região amazônica, representa não só uma técnica adaptativa às condições naturais mas também uma expressão cultural dos povos ribeirinhos e “gente-maré”. Na Vila da Barca, essa arquitetura é resultado da sabedoria ancestral que equilibra formalidade e informalidade no habitar, revelando um modo de vida que resiste ao tempo, às políticas excludentes e às adversidades ambientais, mantendo viva uma comunidade que segue lutando por dignidade, reconhecimento e futuro.

