EL PAÍS: “Podemos e devemos expor os agentes da fragilização das democracias no Brasil e no mundo”

Por | EL PAÍS

Quando esteve em São Paulo em novembro de 2013 para lançar a edição brasileira do EL PAÍS, o diretor do jornal, Javier Moreno (Paris, 1963), assegurou em seu discurso que a missão do grupo era trazer aos leitores brasileiros um projeto que perseguiria o progresso social e a consolidação dos direitos cidadãos, assim como o respeito às minorias. “Vocês podem estar seguros de que, na firmeza desse compromisso, não lhes faltaremos”, disse Moreno. O diretor assume um entusiasmo contagiante ao falar do papel do jornalismo como instrumento para fortalecer as sociedades da América Latina. Moreno deixou o comando do jornal em 2014, mas sua empolgação com o continente americano continuou. Há dois anos tornou-se diretor do EL PAÍS América, até retomar a direção do grupo há três meses. Se antes falava em progresso de conquistas, agora ele reassume o cargo com o desafio de conquistar assinantes para ajudar a blindar a democracia do lado de cá do Atlântico.

Pergunta. Você voltou à direção do EL PAÍS depois de deixá-la em 2014. Quais mudanças o jornal viveu e que mundo você encontra depois de seis anos?

Resposta. O que mais me surpreendeu no jornal foi ver como seu perímetro cresceu em apenas seis anos. Desses, estive quatro realmente fora e os outros dois estive na direção do jornal na América [na redação do EL PAÍS situada no México, entre 2018 e 2020]. Antes participei do lançamento da edição EL PAÍS Brasil [em novembro de 2013]. Isso me impressiona, [a diferença] do que ele era quando o deixei há apenas seis anos. Quando a gente olha a nossa home, vemos um jornal muito potente [hoje o EL PAÍS conta com a edição em catalão, lançada em 2014 com uma redação baseada em Barcelona, e com o EL PAÍS México, que nasceu este ano]. Quando se começa a ver e explorar a profundidade do conteúdo que oferecemos, realmente ele se multiplicou muito desde que deixei o jornal… para melhor. O EL PAÍS deu um salto ao ampliar o seu alcance para as sociedades às quais se dirige.

P. E o mundo?

R. Encontro um mundo mais frágil, instituições, líderes mais frágeis. Tudo se fragilizou, estão se desfiando as convenções. A pandemia veio para acelerar um pouco esse processo. A vida humana se fragilizou. Tudo é mais frágil. Acho que isso também nos leva a uma hipersensibilidade. Na volta à direção descubro que todo mundo, líderes políticos, sindicais, empresariais, estão hipersensíveis, inclusive com os assuntos cobertos pelo jornal. Coisas que antes não iriam gerar nenhuma polêmica ou não iriam além de um comentário agora terminam em queixas apaixonadas ou lamentos aparentemente terríveis. A gente percebe que todos estão mais frágeis e mais temerosos, um reflexo do momento atual. Um mundo mais frágil que requer nossa atenção, nossa dedicação e esforço para levar aos leitores o jornalismo que nos exigem e que precisam diante deste quadro cada vez mais vulnerável.

P. O que o jornal aporta num tempo em que as democracias estão fragilizadas, como no Brasil? Somos capazes de serenar ânimos?

R. Podemos e devemos acalmar ânimos e também podemos e devemos denunciar o indefensável. Denunciar o inaceitável, expor os agentes dessa fragilização. Essa fragilidade da qual falei antes obviamente não se produz por geração espontânea. Parte é acentuação de processos que vêm de longo prazo, como o crescimento da desigualdade especialmente na América Latina, no Brasil. A pandemia fragilizou a vida de todos no mundo. Há uma parte da sociedade ―na qual incluímos os jornalistas― que está mais protegida por poder fazer trabalho remoto, de casa. Mas outra parte se deparou com o valor do seu trabalho ou viu que ele perdeu o valor completamente. Não podem trabalhar de casa, têm que sair, arriscar suas vidas no transporte público. Há muitos elementos que estão contribuindo para a fragilização da sociedade. Também temos lideranças políticas, partidos políticos, movimentos, ideias que estão voluntariamente enfraquecendo a sociedade, tentando abrir brechas no tecido democrático para forçar suas ideias, ocupar espaços de poder. Nossa tarefa dobra nestes tempos. Colocar isso em foco, mostrar estas contradições, sustentar os valores do jornal, compartilhados com os leitores e as sociedades às quais nos dirigimos num momento, como disse antes, de extrema fragilidade. Quero pensar que isso sempre foi a tarefa do jornalismo e não quero parecer que sejamos seres especiais.

P. Então qual é o desafio da nossa geração?

R. Certamente se olharmos para trás todas as gerações de jornalistas tinham seus desafios e suas dificuldades e alguns ao extremo. Imagine o que é fazer jornalismo em um continente em guerra ou sob uma ditadura militar… Realmente não somos os primeiros em viver situações limite e alguns de nossos pais ou avós, sejam profissionais, ou espirituais nos diriam: “Olha, gente, entendo que vocês estão aqui lutando muito. Mas vocês não sabem como foi [fazer jornalismo] sob a ditadura, ou em um continente em guerra ou durante a ascensão do fascismo na Europa nos anos 1930.” [O desafio] é pegar essa tocha, desse jornalismo valente que resistiu a situações que agora pareceriam inimagináveis, e ajudar a sociedade a sair do estado de deslocamento e de fragilidade em que estamos. Podemos e devemos ajudar. Acredito que somos parte da solução. A solução precisa ser decidida pelos cidadãos. Será o que os brasileiros quiserem. Mas nós jornalistas podemos ajudar a formar uma opinião para que se possa decidir com todos os elementos sobre a mesa. Podemos ajudar a moderar essa distorção permanente que está se produzindo no mundo e também no Brasil.

P. O EL PAÍS nasceu logo depois de uma ditadura, e teve um papel de destaque durante uma tentativa de contragolpe militar na Espanha nos anos 1980. De que forma essa experiência marcou a identidade do jornal?

R. Eu acho que isso realmente foi integrado ao DNA do jornal, como aqueles relatos míticos que acabam estruturando uma cultura. O EL PAÍS nasceu no início da democracia na Espanha, um ano após a morte do ditador [Francisco Franco em 1975]. Em [23 de fevereiro, o 23 F de] 1981, durante uma tentativa de golpe de Estado, o jornal sai com a manchete “EL PAÍS com a Constituição”. Um título de sentido duplo, do país [a Espanha] e do jornal ao lado da Constituição. Pela posição política que ocupava, e também pelo fato de que havia militares nas ruas e ocupando o Congresso, o jornal sair com uma primeira página dessas era fazer jornalismo como o que falávamos antes. Arriscar a vida, a própria liberdade. Naquele dia o diretor [Juan Luis Cebrián] desceu na redação e avisou “Vamos colocar o jornal na rua”. Aquilo era um editorial em si mesmo. Colocar um jornal na rua sem saber se os militares iriam triunfar. Ele disse que quem quisesse podia ir para casa, pois ali estava tudo em risco, a liberdade e, quiçá, até a vida. Ninguém foi embora. E naquele momento se imprimiu o jornal, o único jornal com esse título. E houve outra passagem interessante. Conseguiu-se fazer chegar alguns exemplares do EL PAÍS dentro do Congresso, onde deputados se encontravam sequestrados pelos militares. Quando eles viram que o jornal estava na rua tiveram esperança. Entenderam ali que o golpe, ainda que estivessem isolados, havia fracassado ou estava em vias de fracassar porque o EL PAÍS estava nas ruas. Algo assim, tão potente, se integra no DNA do jornal e dos jornalistas. A defesa das liberdades democráticas é algo que levamos em nosso coração e em nosso dia a dia profissional.

P. O Brasil começa um projeto de assinatura digital depois de quase sete anos de vida. Quais sinais de maturidade têm o projeto brasileiro para dar um passo como este?

R. Os primeiros números de assinaturas depois que a Espanha e a América Latina (com exceção do Brasil) fecharam conteúdo em maio passado são muito bons [113.000, sendo 67.000 digitais]. Estamos muito felizes e muito animados de ter dezenas de milhares de assinantes porque acreditamos que são leitores muito comprometidos com o jornal. Eles entendem que, para continuar o trabalho que fazemos com completa independência e para manter essa tocha que herdamos desses avós e pais que fizeram jornalismo em condições mais difíceis que as nossas, precisamos do seu apoio. É um apoio que agradecemos de maneira especial. Primeiro porque o jornal precisa de recursos para fazer um bom jornalismo. E precisamos deles para sermos independentes de todos os poderes. Aqui a gente pensa no poder dos Governos. Mas também no poder dos bancos, das empresas, dos anunciantes, dos sindicatos. De qualquer um que queira influenciar no jornal. E a única sustentação que temos são os nossos leitores. Por outro lado, por que a fé no Brasil? Porque eu vejo essa fé em todos os jornalistas da redação do Brasil. Todos estão convencidos de que esse é o caminho. Quando eu escuto vocês, vejo que são os primeiros que desejam que tenhamos um modelo de assinatura que assegure o futuro do jornalismo que queremos fazer, que necessitamos fazer e acreditamos que o Brasil precisa. É o que me dá a segurança de que estamos no caminho certo. A força que vejo nos jornalistas da redação do EL PAÍS no Brasil.

P. O EL PAÍS chegou adiantado à experiência da assinatura digital nos anos 2000 e depois voltou atrás. Agora retoma esse projeto quando todos os jornais dominam esse modelo. Não estamos atrasados?

R. Talvez sim. Os processos levam seu tempo. Tivemos uma experiência que talvez tenha sido muito adiantada para a época. Mas também mudam as tecnologias, os paradigmas. Houve um momento em que parecia que o volume de leitores iria nos trazer recursos suficientes em publicidade para sustentar o jornal. Logo ficou claro que não era bem assim. As resoluções tomam seu tempo e, uma vez que cometemos aquele erro ―e que visto em retrospectiva hoje, não foi um erro, embora tenha parecido que fosse por alguns anos―, nesta segunda vez vamos pensar mais, meditar mais, e fazê-lo bem, definir melhor tudo. Vamos avançar por partes. Acho que desta vez o desenvolvimento vem com mais convicção, mais conhecimento e acho que num entorno muito mais propício.

P. Somos um jornal que fala com formadores de opinião, principalmente. Mas competimos com movimentos como QAnon, com fake news que devem se repetir nas eleições nos EUA e no Brasil. Como concorrer enquanto há 500 vídeos chegando no WhatsApp de uma maioria com informações falsas?

R. Acho que isso requer várias coisas, sobretudo um esforço por parte dos jornalistas de construir um relato honesto com os leitores e que imediatamente seja reconhecível em um ambiente confiável, construir um entorno de confiança. O EL PAÍS aspira ser também, entre muitas coisas, uma bolha de sensatez. E creio que isso é importante, creio que o leitor está começando a reconhecer e apreciar [esse papel] mais do que antes. Passamos alguns anos em que tudo valia, não se separava o joio do trigo e cada vez mais o leitor exigente, consciente do que está acontecendo, pede seus entornos seguros, pede esses espaços de confiança, essas bolhas de bom senso. Acredito que o jornal EL PAÍS tem um esforço que leva no seu DNA, que levamos sempre, que nos marca como uma identidade e que vamos trabalhar duro. Isso é o que podemos oferecer, um relato confiável, um entorno de confiança e bolhas de sensatez.

P. Háuma crise econômica com a pandemia, que pode fragilizar ainda mais a vida individual das pessoas e do país. Como o EL PAÍS pode sobreviver?

R. Efetivamente, a situação é grave, vai ser complicado para todo mundo e já tivemos uma experiência com a crise de 2008, e por isso a mudança de modelo [para assinatura digital]. A melhor maneira de continuar oferecendo o jornalismo que queremos fazer é contar com uma base de leitores fieis. Que se comprometem com o jornal. Estou certo de que passaremos dificuldades como todo mundo. Não somos alheios ao mundo, mas estamos muito confiantes, com este impulso dos assinantes digitais, que nos mostram que o que fazemos tem valor, cimenta a relação especial entre leitores e o jornal, estou seguro de que com essa ajuda e nosso esforço vamos adiante.

P. Quer deixar uma mensagem para os leitores do Brasil?

R. Aos leitores do Brasil, muito obrigado de verdade por nos escolher. Obrigado por nos ler, por nos incentivar. A redação do Brasil, como todas as redações no mundo, é menor do que gostaríamos porque os recursos são limitados. Trabalhamos sempre no limite, o esforço é extraordinário. E quando chega uma mensagem de um leitor que nos diz: “Não deixem de fazer o que fazemos”… Aos leitores, muito obrigado por confiar na gente.