O Brasil atravessa uma dicotomia na evolução de sua violência letal, numa dinâmica que vem sendo moldada pela descentralização do crime organizado, pela interiorização da violência — fenômeno recentemente destacado pelo Atlas da Violência 2025 —, e pela persistente redução nacional dos homicídios. O relatório, produzido em parceria entre o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), revela que, enquanto capitais tradicionais como Fortaleza, São Luís, Goiânia, Cuiabá e o Distrito Federal registraram quedas superiores a 60% nas taxas de homicídios na última década, municípios médios e pequenos do Norte e Nordeste passaram a viver o drama antes restrito às grandes metrópoles.
Dois movimentos explicam esse cenário: de um lado, a redução dos índices de homicídio nas grandes cidades, fruto tanto da melhoria nas políticas públicas de segurança quanto da estabilização de mercados ilegais sob o domínio de facções hegemônicas; de outro, a expansão territorial do crime organizado, que encontra em cidades menores e em regiões historicamente menos afetadas um território fértil para disputas territoriais e recrutamento de jovens desassistidos. O resultado é uma desconcentração da violência e uma nova geografia do crime, onde o drama da segurança pública migra do centro para a periferia das grandes cidades e para o interior do país.
O Atlas da Violência 2025 evidencia que as grandes cidades do Brasil — aquelas com mais de 500 mil habitantes — tiveram, em 2023, uma taxa média de 23,6 homicídios por 100 mil habitantes, enquanto as cidades médias (entre 100 mil e 500 mil habitantes) registraram 24,2 casos por 100 mil habitantes. As pequenas (até 100 mil habitantes) apresentaram taxa média de 20 homicídios por 100 mil, mas entre elas há quase 1,6 mil municípios que não registraram nenhum homicídio no período, um cenário de extrema desigualdade: os 20 municípios mais violentos do país chegaram a taxas que são quase três vezes a média nacional, chegando a 65,4 homicídios por 100 mil habitantes.
A dinâmica do crime organizado explica boa parte desse cenário. O relatório aponta que as facções já operam em todas as unidades da federação, mas com perfis distintos. Em estados como Bahia e Pernambuco, a presença de vários grupos — como Comando Vermelho, Primeiro Comando da Capital, Bonde do Maluco, Comando da Paz — alimenta uma disputa acirrada por território, ao contrário de São Paulo, onde a estabilização do domínio do PCC resulta em um ambiente de violência mais controlada. No Amazonas e no Amapá, as disputas envolvem grupos nacionais e locais, como o Cartel do Norte e a Família Terror, provocando ciclos de violência em cidades portuárias e de médio porte, que são essenciais para rotas do tráfico. Nas regiões Sul e Sudeste, o conflito entre facções ocorre em menor escala, com certa estabilidade em estados como Minas Gerais e Santa Catarina.
Além da estratégia territorial, o relatório destaca a diversidade de ações das organizações criminosas. Grupos maiores e mais organizados, focados em lucro, tendem a reduzir a violência ostensiva para evitar chamar atenção das autoridades. Por outro lado, organizações menores, fragmentadas e em formação recorrem com mais frequência a confrontos armados e execuções como forma de afirmação de poder. Esse movimento é acompanhado de tentativas crescentes de infiltração do crime organizado em atividades econômicas lícitas e na gestão pública, tornando-se uma ameaça à integridade das instituições e à democracia. O Atlas alerta para o perigo dessas organizações atuarem não só na ilegalidade, mas também na economia formal e nas estruturas políticas.
Contrapondo-se a essa expansão, o documento destaca uma “revolução invisível” nas políticas de segurança pública, iniciada nos anos 2010, que combina inteligência, prevenção social, integração de ações e fortalecimento das instituições, responsável por parte da redução dos homicídios no país. Apesar dessa melhora, o desafio agora é ampliar o foco para além das capitais, levando ações qualificadas de segurança e políticas sociais para os municípios do interior, especialmente do Norte e Nordeste, onde o crime organizado avança de forma rápida e violenta.
A geografia da violência no Brasil, portanto, mudou: não se distribui mais apenas de forma concentrada nas grandes cidades, mas se espalha de modo desigual pelo território nacional, com ilhas de alta letalidade e grandes diferenças entre municípios vizinhos. O desafio para os próximos anos é impedir que o crescimento econômico, a interiorização da população e o enfraquecimento das redes sociais deixem o campo aberto para o avanço do crime organizado, enquanto se reforça o pacto democrático e a prevenção social como pilares centrais da segurança pública.

