## Caso Herzog: 50 anos de um crime, reparação e memória
No dia 25 de outubro de 1975, o Brasil foi chacoalhado pelo assassinato de Vladimir Herzog, o Vlado, diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, nas celas do DOI-CODI, órgão de repressão do regime militar. Cinco décadas depois, o Estado brasileiro dá passos importantes na reparação histórica, reconhecendo pela primeira vez Herzog como anistiado político _post mortem_ e acertando indenização para sua família, ainda este ano.
Vlado, nascido em 1937 na antiga Iugoslávia e refugiado no Brasil desde criança, tornou-se jornalista reconhecido pelo profissionalismo e compromisso com os direitos humanos. À época de sua morte, era suspeito de ligação com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), então na ilegalidade. Previamente intimado, apresentou-se espontaneamente ao DOI-CODI na manhã do dia 25 de outubro, deixando ao país, à esposa Clarice e aos dois filhos, apenas a certeza daquela ida. Ao voltar, trouxe o corpo e a versão oficial de suicídio, enforcado com o cinto de seu macacão — detalhe de farsa: os presos do DOI-CODI não usavam cinto, tampouco era possível, com a grade em 1,63m de altura, que o corpo aparecesse suspenso, pés no chão, como nas fotos divulgadas pelos militares.
Testemunhas que estavam presas no mesmo local, entre elas os jornalistas George Benigno Jatahy Duque Estrada e Rodolfo Konder, relataram ousadias de tortura: ordem para trazer a “máquina de choques”, rádio ligado para abafar gritos, documento assinado sob coação. O laudo oficial que apontava suicídio só seria desmentido quase trinta anos depois, em 2003, quando Clarice Herzog recebeu atestado com causas reais da morte: “lesões e maus tratos sofridos durante interrogatório”. Naquele outubro de 1975, mais do que a vida de um jornalista, perdia-se uma parte do Brasil, mas a farsa não silenciou. A sociedade reagiu. Na quinta-feira, 31 de outubro, mais de oito mil pessoas lotaram a Catedral da Sé, num culto ecumênico com vozes católica, judaica e evangélica. O rabino Henry Sobel recusou o enterro no setor reservado aos suicidas, recusando publicamente a farsa do regime. Até setores conservadores do empresariado paulista se posicionaram, e o caso abriu fissura visível entre a chamada “linha dura” e o projeto de distensão do general Ernesto Geisel.
Os desdobramentos jurídicos foram lentos, tortuosos, como o próprio percurso do país rumo à abertura política. Em 1996, o Ministério Público Federal requereu abertura de nova investigação, mas a Lei de Anistia, interpretada de maneira extensiva pelo Supremo Tribunal Federal em 2010, impediu a responsabilização direta dos agentes envolvidos. Em 2009, o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) levou o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que considerou o Brasil responsável pela violação do direito à vida, à integridade pessoal, à liberdade de expressão, ao devido processo legal e à proteção judicial. Como o país não cumpriu integralmente as recomendações, o caso foi levado, em 2016, à Corte Interamericana. Em 2013, a Justiça Federal já havia declarado, após 38 anos, a responsabilidade do Estado pela morte.
Agora, 50 anos depois, após uma longa caminhada, assiste-se ao simbólico reconhecimento formal de Herzog como anistiado político post mortem e à reparação pecuniária à família. São passos importantes, mas o saldo final parece ainda medido pela ambivalência entre o avanço institucional e a ausência de justiça criminal efetiva para seus algozes.
O legado de Vlado Herzog atravessa cinco décadas e ganha novos significados diante dos desafios democráticos do presente. Sua história é uma interrogação permanente sobre o resgate da verdade, o dever de memória e o compromisso com o “Nunca Mais”, não como slogan, mas como prática política e cívica. Seu caso continua a inspirar a resistência contra a violência de Estado, o arbítrio e a impunidade, lembrando que a democracia se faz também de reparação, história e verdade.
