Políticos bolsonaristas utilizaram as redes sociais para disseminar informações falsas sobre a boxeadora argelina Imane Khelif. Os parlamentares descreveram a atleta, que é intersexo, como uma mulher transsexual ou “homem biológico”, questionando sua participação nas Olimpíadas de Paris 2024 após sua vitória na primeira rodada da categoria até 66 kg do boxe feminino.
Indivíduos intersexo nascem com características sexuais que não se encaixam nas definições típicas de corpos masculinos ou femininos. Essas características podem incluir traços anatômicos, órgãos reprodutivos, padrões hormonais e/ou cromossômicos. Já uma pessoa transexual tem uma identidade de gênero diferente do sexo biológico designado ao nascer. Uma mulher trans é alguém que se identifica como do gênero feminino, embora tenha nascido biologicamente como pertencente ao sexo masculino.
Após o fim da luta, a italiana Angela Carini, adversária de Khelif, afirmou que desistiu do combate devido a dores no nariz, negando qualquer relação com a condição da oponente. “Entrei no ringue e tentei lutar. Eu queria vencer”, explicou Carini.
Em uma postagem no X, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) compartilhou um vídeo mostrando um trecho da luta. Ele alegou, sem respaldo nas declarações da própria lutadora, que Carini desistiu do combate após enfrentar um “homem biológico socando a cara dela muito mais forte”. Em outro momento da gravação, o parlamentar referiu-se à argelina como uma pessoa “trans”.
O senador Eduardo Girão (PL-RJ) compartilhou uma imagem de Carini chorando após a luta e escreveu que era um “escárnio ver um homem biológico batendo numa mulher com gente assistindo e achando bom”. Girão também compartilhou uma postagem da jogadora de vôlei e medalhista olímpica Tandara Caixeta, candidata a vereadora de São Paulo pelo PL, que escreveu: “Estamos em uma era que pagamos para assistir um homem quebrando o nariz de uma mulher e aplaudindo”. Tandara também afirmou, equivocadamente, que a lutadora vencedora seria uma “mulher trans”.
O senador Sergio Moro, por sua vez, postou um vídeo da luta e escreveu que “ninguém deve ser discriminado por sua opção sexual, mas precisa haver competição justa para mulheres”. O parlamentar acrescentou que “colocar alguém que mudou de sexo para competir no boxe olímpico com uma mulher não é fair game (jogo justo)”. Horas depois, Moro publicou outro tweet afirmando ter recebido informações de que “não houve mudança de sexo”, mas ressaltou que, devido à atleta ter “falhado em critérios de elegibilidade para competir no boxe feminino perante a IBA”, a Federação Internacional de Boxe, o “problema persiste”. O senador referiu-se à lutadora no masculino e reforçou que seu post estava “correto”.
Entenda o caso
Em 2023, as pugilistas Imane Khelif e a taiwanesa Lin Yu-ting foram desclassificadas da Copa do Mundo, em Nova Delhi, organizada pela IBA — hoje descredenciada —, após serem reprovadas nos testes de elegibilidade. A medalha de bronze de Lin foi retirada depois que ela não passou em exames “biomédicos” encomendados pela federação.
Com isso, ambas sofreram inúmeros ataques de internautas e até de colegas de profissão, como Caitlin Parker, da categoria até 75 kg, que considerou “perigoso” ter a participação de atletas que não passaram em teste de gênero.
Nesta quinta-feira, o Comitê Olímpico Internacional (COI) emitiu um comunicado informando que as atletas sofreram ataques enganosos em redes sociais e classificando os testes aplicados pela IBA como pouco claros e arbitrários. Antes disso, ambas sempre estiveram dentro dos parâmetros estabelecidos pelo COI e pela Unidade de Boxe de Paris 2024 (PBU), competindo em disputas internacionais de boxe, como os Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 e o Campeonato Mundial da própria IBA.
“Os ataques contra essas duas atletas se baseiam inteiramente nessa decisão arbitrária, que foi tomada sem nenhum procedimento adequado – especialmente considerando que essas atletas participam de competições de alto nível há muitos anos”, disse o COI na nota.
Intersexo vs. Transgênero, qual a diferença?
Imane Khelif nasceu com uma condição intersexo, o que significa que suas características sexuais não se encaixam nas típicas definições de corpos masculinos ou femininos. No caso de Khelif, ela possui órgãos genitais femininos, mas seus cromossomos sexuais são XY (geralmente associados ao sexo masculino) e seus níveis de testosterona no sangue são compatíveis com o corpo masculino. Apesar dessas características biológicas, Khelif se identifica como mulher.
A situação de Imane Khelif é distinta da condição transgênero. Pessoas transgênero não se identificam com o sexo que lhes foi atribuído ao nascimento e, muitas vezes, passam por transições para alinhar sua identidade de gênero com seu corpo. Esse não é o caso de Khelif, que sempre se identificou com o sexo feminino, o que, segundo o Comitê Olímpico Internacional (COI), a permite competir na categoria feminina. Portanto, diferente do intersexo, as pessoas transgênero não se identificam com o gênero de nascimento. Não há uma questão física, como ter os dois cromossomos, por exemplo.