Relatório da Anistia Internacional classifica como genocídio os atos de Israel contra os palestinos na Faixa de Gaza

Após 7 de outubro de 2023, o Estado de Israel cometeu e continua a cometer genocídio contra os palestinos na Faixa de Gaza ocupada. É o que afirma o relatório “You Feel Like You Are Subhuman’: Israel’s Genocide Against Palestinians in Gaza” (“Você se sente como se fosse sub-humano: genocídio de Israel contra os palestinos em Gaza”), da Anistia Internacional, a ser lançado na próxima quarta.  

Um jovem palestino caminha entre os escombros após ataques aéreos israelenses em Khan Yunis, Gaza, em 7 de abril de 2024. Foto por Ahmad Hasaballah/Getty Images.

Um ano após o ataque do Hamas contra Israel, o Ministério da Saúde de Gaza registrava 42.010 mortes e 97.590 feridos – número que segue crescendo. Houve também índices de mortalidade de crianças nunca vistos na região, com 13.319 óbitos, além de jornalistas, trabalhadores da saúde e humanitários. 

No documento, a Anistia Internacional examina os atos de Israel em Gaza, entre 7 de outubro de 2023 e o início de julho de 2024, levando em conta sua recorrência e seu impacto. A organização entrevistou 212 pessoas, incluindo vítimas e testemunhas palestinas, autoridades locais em Gaza e profissionais de saúde e humanitários. Além de trabalho de campo, o relatório analisa uma ampla gama de evidências visuais e digitais, incluindo imagens de satélite. A Anistia Internacional revisou ainda declarações de altos funcionários militares e do governo israelense e de órgãos oficiais do país e a forma como elas impactaram diretamente violações ocorridas em Gaza.  

Duas decisões internacionais só enfatizam os achados da Anistia Internacional, como a emissão de mandados de prisão pelo Tribunal Penal Internacional e as medidas provisórias contra Israel no decurso do processo proposto pela África do Sul de genocídio contra Israel na Corte Internacional de Justiça.  

É imperioso que os Estados pressionem Israel para cumprimento de suas obrigações e, inclusive, se posicione de modo a indicar que respeita o TPI e que irá cumprir o mandado expedido se tiver oportunidade. Esta semana ocorre 23ª sessão da Assembleia dos Estados Partes do Estatuto de Roma e a Anistia Internacional entende que é central instar os países participantes a afirmar seu compromisso de fortalecer o sistema do Estatuto de Roma e o Tribunal Penal Internacional dentro dele.   

O relatório considera como grupo sob ataque os palestinos que estão nos territórios militarmente ocupados por Israel, aqueles que vivem e são cidadãos de Israel e refugiados, uma vez que todos eles se identificam como palestinos e possuem um forte laço cultural, político, étnico e social. Eles, assim, compõem um grupo nacional, étnico e racial protegidos pela Convenção sobre Genocídio, conforme estabelecido nos achados preliminares da Corte Internacional de Justiça. 

“O documento revela que Israel agiu com incontestável intenção de destruir os palestinos na região de Gaza. Dentre os atos praticados estão assassinatos, causar sérios danos físicos ou mentais em membros do grupo e a imposição de condições de vida calculadas para provocar sua destruição em Gaza. As denúncias que a Anistia Internacional documentou devem servir de motivação para que a comunidade internacional exija o fim do genocídio”, afirma Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional Brasil.  

A forma como os ataques foram feitos, segundo o relatório, também visava causar um alto número de mortos e feridos na população civil, especialmente quando se observa o uso por Israel de armas explosivas com raio amplo de impacto, os horários e localidades dos ataques e a ausência de aviso efetivo ou quaisquer outros alertas. Os locais alvo chegaram a possuir maior densidade populacional do que o comum em razão do influxo de pessoas deslocadas, com muitas casas abrigando inclusive famílias estendidas. 

 A OFENSIVA ISRAELENSE 

A dimensão e a velocidade dos danos e da destruição de residências e infraestrutura em todos os setores da economia também não encontram precedente em nenhum outro conflito no século XXI, e especialistas em sensoriamento remoto observaram que foi “muito mais rápido e extenso” do que qualquer coisa que eles já mapearam antes. Cerca de 62% de todas as residências em Gaza foram danificadas ou destruídas até janeiro de 2024, afetando aproximadamente 1,08 milhão de pessoas, de acordo com uma Avaliação Provisória de Danos conjunta publicada pelo Banco Mundial, União Europeia e Nações Unidas em março de 2024. Em julho, cerca de 63% do total das estruturas em Gaza havia sido danificada ou destruída, de acordo com uma avaliação feita por imagens de satélite do Centro de Satélites das Nações Unidas (UNOSAT). A Anistia Internacional estimou que havia, em média, um prédio danificado ou destruído a cada 17 metros em Gaza até então. Enquanto isso, cerca de 625.000 estudantes perderam um ano letivo inteiro, com cerca de 85% das escolas tendo sofrido algum tipo de dano. 

A existência de objetivos militares – incluindo a erradicação do Hamas – de forma alguma prejudica ou desmente a existência de intenção genocida. As autoridades israelenses argumentam que suas forças militares visaram legalmente o Hamas e outros grupos armados palestinos em toda a Faixa de Gaza e que a destruição sem precedentes resultante e a negação de ajuda foram o resultado da presença do Hamas entre os civis palestinos e seu desvio de ajuda, respectivamente.  

Israel cometeu vários crimes de guerra e outros crimes internacionais para os quais não há justificativa, com base nas ações do Hamas. A Anistia Internacional também não encontrou evidências de que o possível desvio de assistência humanitária por parte do Hamas explicasse os atos de Israel ao bloquear, restringir e impedir a entrada e entrega de ajuda humanitária e itens essenciais em Gaza. 

A Anistia Internacional também considerou e rejeitou o argumento de que Israel está agindo de forma imprudente, sem intenção específica de destruir os palestinos em Gaza. Muitos dos atos ilegais de Israel são, por definição, intencionais, inclusive a detenção arbitrária e ilegal e a tortura. Da mesma forma, a negação e a restrição de ajuda humanitária por parte de Israel foram medidas precisas e deliberadas, sem nenhuma indicação de irresponsabilidade. Ver seus alvos como subumanos é uma característica consistente do genocídio.  

A Anistia Internacional considerou o contexto do sistema de apartheid de Israel, seu bloqueio a Gaza e a ocupação militar ilegal do território palestino, que já dura 57 anos, além de examinar, em especial, as seguintes alegações de Israel: de que seus militares tinham como alvo legal o Hamas e outros grupos armados na região; e a de que a destruição sem precedentes e a negação de auxílio humanitário foram o resultado de conduta ilegal do Hamas e de outros grupos armados, que misturaram seus combatentes à população civil e desviaram a ajuda humanitária. A conclusão da Anistia foi de que estas afirmações não são válidas como justificativas. A presença de combatentes do Hamas perto ou dentro de uma área densamente povoada não isenta Israel das suas obrigações de tomar todas as precauções possíveis para poupar os civis e evitar ataques indiscriminados ou desproporcionais. O relatório coloca de forma patente e comprovada que Israel não tomou nenhuma das medidas de mitigação necessárias, o que reforça a sua intenção de genocídio. 

Para interromper o cometimento de atos proibidos, evitar que se repitam no futuro e garantir responsabilização e reparação total, a Anistia Internacional apresenta uma série de recomendações às autoridades israelenses, a outros países, à ONU e a organizações regionais, ao Gabinete do Procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI) e às autoridades palestinas. 

 RECOMENDAÇÕES A ISRAEL  

Israel deve priorizar as ações necessárias para acabar urgentemente com o cometimento de atos proibidos pela Convenção do Genocídio (1948) contra os palestinos em Gaza e para impedir o posterior cometimento de tais atos por qualquer um de seus órgãos estatais.  

Israel também deve colaborar com investigações internacionais sobre genocídio, bem como procedimentos perante a Corte Internacional de Justiça (CIJ), que é o principal órgão judicial da ONU, incluindo o cumprimento de todas as medidas provisórias emitidas por este tribunal desde 26 de janeiro de 2024.  

A Anistia Internacional também está exigindo que   Israel melhore urgentemente a situação humanitária em Gaza, de acordo com suas obrigações como potência ocupante, bem como suas obrigações como parte do conflito armado. O país deve também reverter todas as políticas e ações que resultaram na rápida deterioração das condições de vida em Gaza. Tudo começa permitindo a passagem desimpedida para dentro de Gaza de quantidades suficientes, seguras e acessíveis de bens e materiais essenciais para a reconstrução e reparo de propriedades e infraestrutura civil danificadas e destruídas.  

Israel também deve abrir imediatamente todas as rotas de ajuda e pontos de acesso disponíveis e garantir que as necessidades básicas das pessoas que vivem em Gaza sejam atendidas. Deve ainda permitir o acesso a serviços essenciais, por meio do fornecimento suficiente e contínuo de eletricidade e combustível.  

A Anistia Internacional também solicita a Israel que permita que todos os palestinos deslocados à força desde 7 de outubro de 2023 retornem às suas áreas de residência ou a quaisquer outras áreas de sua escolha em Gaza, incluindo áreas localizadas ao norte de Wadi Gaza. Da mesma forma, todos os civis que residem na área localizada ao norte de Wadi Gaza devem ter livre passagem para a área localizada ao sul, se assim o desejarem, sem quaisquer restrições indevidas à sua movimentação. Até que as casas sejam reconstruídas, Israel deve garantir o acesso a moradias temporárias dignas. 

Israel deve permitir que todos os pacientes que precisam de tratamento médico urgente não disponível em Gaza tenham acesso a cuidados de saúde em outras partes dos Territórios Palestinos Ocupados ou no exterior, além de permitir seu retorno após o tratamento. A Anistia Internacional renova seu apelo a Israel, Hamas e outros grupos armados palestinos para concordarem com um cessar-fogo imediato e sustentado.  

A Anistia também insta Israel a pôr fim a sua ocupação ilegal de Gaza e do resto dos Territórios Palestinos Ocupados, em acordo com a opinião consultiva do CIJ, de 19 de julho de 2024, que recomenda o desmantelamento de seu sistema de apartheid, o que inclui o bloqueio de 17 anos com impactos em inúmeros aspectos da vida dos palestinos em Gaza.  

Uma ação internacional forte e sustentada é necessária para garantir que Israel implemente essas recomendações. Em linha com sua obrigação de prevenir e punir atos de genocídio, a Anistia Internacional apela a todos os Estados, particularmente aqueles com influência sobre Israel, incluindo seus aliados mais fortes, como os EUA, o Reino Unido, a Alemanha e alguns outros estados-membros da União Europeia, para tomarem medidas urgentes no sentido de interromper condutas israelenses em Gaza que possam equivaler ao genocídio. Como primeiro passo, eles devem garantir que Israel implemente devidamente todas as medidas provisórias ordenadas pelo CIJ desde 26 de janeiro de 2024.  

Para romper com o ciclo de abusos, a Anistia Internacional também traz um conjunto de recomendações ao Hamas, incluindo a libertação imediata e incondicional de reféns civis e a garantia de que todos os cativos sejam tratados humanamente e visitados pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) e outros monitores internacionais.  

Enquanto isso, as autoridades do Estado da Palestina devem agilizar a abertura de investigações sobre todas as alegações de crimes sob o direito internacional e outras violações graves de direitos humanos cometidas por membros de grupos armados palestinos, com vistas a levar aqueles razoavelmente suspeitos de responsabilidade criminal individual a julgamento em procedimentos que atendam aos padrões internacionais, sem recurso à pena de morte. 

Anistia se Junta a uma Lista Crescente de Especialistas

No mês passado, o Tribunal Penal Internacional emitiu mandados de prisão contra o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, e o ministro Yoav Gallant, por crimes de guerra. Um caso liderado pela África do Sul no Tribunal Internacional de Justiça, acusando Israel de genocídio, já recebeu o apoio de várias nações – incluindo Espanha, Irlanda e Bélgica. O TIJ ordenou que Israel impedisse atos de genocídio (o que Israel continua a ignorar) enquanto o caso prossegue.

Desde o início da guerra, as forças israelenses mataram pelo menos 44.532 palestinos, feriram pelo menos 105.538 e deslocaram cerca de 90% da população de Gaza. Acredita-se que esses números sejam subestimados devido à destruição de sistemas de saúde e rastreamento, além de milhares de pessoas desaparecidas nos escombros.

Com sua conclusão, a Anistia Internacional agora se junta a uma lista crescente de pessoas e organizações que concluíram que Israel está cometendo genocídio contra os palestinos.

Esses incluem:

  • Relatores Especiais da ONU;
  • O historiador do Holocausto Barry Trachtenberg;
  • O professor de genocídio e Holocausto israelense-americano Omer Bartov;
  • O historiador do Holocausto israelense Amos Goldberg;
  • O cofundador da Human Rights Watch e sobrevivente do Holocausto Aryeh Neier;
  • O Instituto Lemkin de Prevenção ao Genocídio;
  • A Rede Universitária de Direitos Humanos;
  • A Federação Internacional de Direitos Humanos;
  • A organização Voz Judaica pela Paz;
  • Países como África do Sul, Nicarágua, Bélgica, Irlanda, Colômbia, Líbia, Egito, Cuba, México, Palestina, Espanha, Turquia, Chile, Maldivas e Bolívia;
  • Congressistas norte-americanos, incluindo Rashida Tlaib, Alexandria Ocasio-Cortez, Ilhan Omar e outros.

ACESSE O RELATÓRIO.