Por BBC Brasil
Quatro meses depois de fazer críticas públicas contra o desmatamento no Brasil, o presidente Joe Biden e membros do alto escalão do novo governo dos EUA receberam nesta semana um longo dossiê que pede o congelamento de acordos, negociações e alianças políticas com o Brasil enquanto Jair Bolsonaro estiver na Presidência.
O documento de 31 páginas, ao qual a BBC News Brasil teve acesso, condena a aproximação entre os dois países nos últimos dois anos e aponta que a aliança entre Donald Trump e seu par brasileiro teria colocado em xeque o papel de “Washington como um parceiro confiável na luta pela proteção e expansão da democracia”.
“A relação especialmente próxima entre os dois presidentes foi um fator central na legitimação de Bolsonaro e suas tendências autoritárias”, diz o texto, que recomenda que Biden restrinja importações de madeira, soja e carne do Brasil, “a menos que se possa confirmar que as importações não estão vinculadas ao desmatamento ou abusos dos direitos humanos”, por meio de ordem executiva ou via Congresso.
A mudança de ares na Casa Branca é o combustível para o dossiê, escrito por professores de dez universidades (9 delas nos EUA), além de diretores de ONGs internacionais como Greenpeace EUA e Amazon Watch.
A BBC News Brasil apurou que os gabinetes de pelo menos dois parlamentares próximos ao gabinete de Biden — a deputada Susan Wild, do comitê de Relações Internacionais, e Raul Grijalva, presidente do comitê de Recursos Naturais — revisaram o documento antes do envio.
O texto têm o endosso de mais de 100 acadêmicos de universidades como Harvard, Brown e Columbia, além de organizações como a Friends of the Earth, nos EUA, e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), no Brasil. A iniciativa é da U.S. Network for Democracy in Brazil, uma rede criada por acadêmicos e ativistas brasileiros no exterior há dois anos que hoje conta com 1500 membros.
Tanto Biden quanto a vice-presidente Kamala Harris, além de ministros e diretores de diferentes áreas do novo governo, já criticaram abertamente o presidente brasileiro, que desde a derrota de Trump na última eleição assiste a um derretimento em negociações em andamento entre os dois países.
“O governo Biden-Harris não deve de forma nenhuma buscar um acordo de livre-comércio com o Brasil”, frisa o dossiê, organizado em 10 grandes eixos: democracia e estado democrático de direito; direitos indígenas, mudanças climáticas e desmatamento; economia política; base de Alcântara e apoio militar dos EUA; direitos humanos; violência policial; saúde pública; coronavírus; liberdade religiosa e trabalho.
O material, segundo a BBC News Brasil apurou, chegou ao núcleo do governo Biden por meio de Juan Gonzalez, recém-nomeado pelo próprio presidente americano como diretor-sênior para o hemisfério ocidental do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca — e conhecido pelas críticas a políticas ambientais de Bolsonaro.
Assessor de confiança de Biden desde o governo de Barack Obama, quando atuou como conselheiro especial do então vice-presidente Biden, Gonzalez passou por diversos cargos na Casa Branca e no Departamento de Estado e hoje tem livre acesso ao salão Oval como o principal responsável por políticas sobre América Latina no novo governo.
“Qualquer pessoa, no Brasil ou em outro lugar, que achar que pode promover um relacionamento ambicioso com os EUA enquanto ignora questões importantes como mudança climática, democracia e direitos humanos, claramente não tem ouvido Joe Biden durante a campanha”, disse Gonzalez recentemente.
O dossiê também circula por membros do Conselho de Assessores Econômicos (CEA, na sigla em inglês) do gabinete-executivo de Biden e pelo ministério do Interior – cuja nova chefe, Debra Haaland, também é crítica contumaz de Bolsonaro.
Rede Internacional
O documento surge em momento de intensa expectativa sobre os próximos passos da relação entre Brasil e Estados Unidos sob o governo de Biden e da vice-presidente Kamala Harris.
Até dezembro do ano passado, os líderes dos dois países celebravam anúncios conjuntos, como protocolos de comércio e cooperação econômica, e mostravam intimidade em encontros públicos. Na Assembleia Geral da ONU de 2019, por exemplo, Bolsonaro chegou a dizer “I love you” (eu amo você) a Trump, que respondeu “Bom vê-lo outra vez”.
Semanas antes, a agora vice-presidente Kamala Harris escreveu que “o presidente do Brasil Bolsonaro precisa responder pela devastação” na Amazônia.
“Qualquer destruição afeta a todos nós”, completou.
O apoio a estes grupos é o eixo principal do dossiê, que também defende que Biden retire o apoio atual dos EUA para a adesão do Brasil à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e questione a participação do Brasil no G7 e G20 enquanto Bolsonaro for presidente.
“Os EUA têm obrigação moral e interesse prático em se opor a uma série de iniciativas da atual presidência do Brasil”, diz o texto. “A recente ‘relação especial’ entre os dois países por meio da ampliação de relações comerciais e ajuda militar possibilitou violações dos direitos humanos e ambientais e protegeu Bolsonaro de consequências internacionais.”