O que é a “diplomacia da reciprocidade” evocada por Lula diante do anúncio do tarifaço de 50% de Trump contra o Brasil?

10 de julho de 2025 – A recente decisão do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de impor uma tarifa de 50% sobre todos os produtos brasileiros a partir de 1º de agosto usando como justificativa críticas ao sistema judiciário do país, trouxeram à tona uma das mais antigas e consistentes doutrinas da política externa brasileira: o princípio da reciprocidade. A resposta do presidente Lula, afirmando que o Brasil “não aceitará ser tutelado por ninguém” e que qualquer medida unilateral será respondida com base na recém-aprovada “Lei da Reciprocidade Econômica”, não é um rompante isolado, mas um eco de uma longa tradição diplomática que agora se ampara em um moderno e poderoso instrumento legal.

“O processo judicial contra aqueles que planejaram o golpe de Estado é de competência apenas da Justiça brasileira e não está sujeito a nenhum tipo de ingerência ou ameaça que fira a independência das instituições nacionais.” Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) 

A diplomacia brasileira, desde os tempos do Império, tem se pautado pela busca de um tratamento isonômico nas relações entre as nações, um pilar fundamental para um país que historicamente navegou entre gigantes no cenário internacional. O princípio se baseia na ideia de que favores, benefícios ou penalidades devem ser retribuídos na mesma medida entre as partes envolvidas. No contexto das relações internacionais, significa que um país tende a conceder o mesmo tratamento a outro país que este lhe concede. Não se encontra de forma explícita em nossa Constituição, mas se manifesta de diversas formas, desde a exigência de vistos para cidadãos de países que impõem a mesma barreira aos brasileiros até a postura em contenciosos comerciais. Ele também pode ser considerado, através de uma interpretação hermenêutica extensiva

Um dos casos mais emblemáticos da aplicação deste princípio pelo Brasil ocorreu na disputa do algodão contra os Estados Unidos na Organização Mundial do Comércio (OMC), que teve início em 2002. Após anos de litígio, a OMC autorizou (2009) o Brasil a impor retaliações comerciais aos EUA devido a subsídios considerados ilegais concedidos a produtores de algodão americanos. Embora a medida mais drástica tenha sido evitada por meio de um acordo, a autorização para retaliação serviu como um poderoso instrumento de pressão e um exemplo claro da disposição brasileira em exigir o cumprimento de regras internacionais de forma recíproca e utilizando-se de meios idôneos no campo do litígio internacional.

A novíssima “Lei da Reciprocidade Econômica”: Lei nº 15.122/25

Apesar de ser um princípio tradicional da diplomacia brasileira, o cenário jurídico diante do atual ‘tarifaço’, será diferente. Em abril de 2025 foi sancionada a Lei nº 15.122, também chamada de “Lei da Reciprocidade Econômica”. Aprovada em regime de urgência, a legislação contou com apoio tanto da base governista quanto da oposição no Congresso Nacional (por mais incrível que pareça) e foi uma resposta direta à escalada da “guerra comercial” iniciada por Donald Trump desde os primeiros dias de seu atual mandato. O movimento do Congresso brasileiro foi visto como uma questão de soberania e defesa dos interesses nacionais, unificando espectros políticos distintos contra o que foi considerado uma ameaça protecionista.

LEI Nº 15.122, DE 11 DE ABRIL DE 2025

Estabelece critérios para suspensão de concessões comerciais, de investimentos e de obrigações relativas a direitos de propriedade intelectual em resposta a medidas unilaterais adotadas por país ou bloco econômico que impactem negativamente a competitividade internacional brasileira; e dá outras providências.

Art. 1º Esta Lei estabelece critérios para a suspensão de concessões comerciais, de investimentos e de obrigações relativas a direitos de propriedade intelectual, pelo Poder Executivo e em coordenação com o setor privado, em resposta a ações, políticas ou práticas unilaterais de país ou bloco econômico que impactem negativamente a competitividade internacional brasileira. FONTE: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-15.122-de-11-de-abril-de-2025-623734149

A nova lei confere ao governo brasileiro um leque de contramedidas que podem ser adotadas em resposta a ações unilaterais que prejudiquem as exportações do país. Entre as medidas previstas estão a imposição de novas tarifas sobre bens e serviços importados, a suspensão de concessões comerciais e, em casos excepcionais, a suspensão de obrigações relativas a direitos de propriedade intelectual:

Art. 3º O Poder Executivo está autorizado a adotar contramedidas na forma de restrição às importações de bens e serviços ou medidas de suspensão de concessões comerciais, de investimento e de obrigações relativas a direitos de propriedade intelectual e medidas de suspensão de outras obrigações previstas em qualquer acordo comercial do País, nos termos desta Lei. § 1º As contramedidas previstas no caput podem incluir, de forma isolada ou cumulativamente: I – a imposição de direito de natureza comercial incidente sobre importações de bens ou de serviços de país ou bloco econômico de que trata o art. 2º desta Lei; II – a suspensão de concessões ou de outras obrigações do País relativas a direitos de propriedade intelectual, nos termos dos arts. 2º a 8º da Lei nº 12.270, de 24 de junho de 2010; III – outras medidas de suspensão de concessões ou de outras obrigações do País previstas em quaisquer acordos comerciais de que o Brasil faça parte. FONTE: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-15.122-de-11-de-abril-de-2025-623734149

Dessa forma, quando o governo de Trump impõe tarifas unilaterais e retaliatórias contra o Brasil, ele não deixa outra escolha ao governo brasileiro senão responder à altura, ou seja, reciprocamente e não mais com base em um princípio diplomático costumeiro, mas sim com base na própria Lei.

A “diplomacia do ego” e a violação dos princípios mais fundamentais da Organização Mundial do Comércio (OMC)

Retaliar um dos principais fornecedores de matéria-prima barata dos Estados Unidos beira o irracional, e faz parecer que a decisão de Donald Trump tem pouco ou nada a ver com política comercial e muito com uma crise de ego. Os Estados Unidos têm superávit comercial com o Brasil. Ou seja, a tarifa anunciada não possui base econômica ou protecionista. É uma punição explícita.

E Trump não faz questão de esconder isso. Em carta endereçada ao presidente Lula, ele deixa claras suas motivações políticas e pessoais: “A forma como o Brasil tratou o ex-presidente Bolsonaro […] é uma vergonha internacional. Este julgamento não deveria estar acontecendo. É uma caça às bruxas que deve acabar IMEDIATAMENTE!” Ele continua, vinculando a medida tarifária a uma suposta perseguição: “Devido aos ataques insidiosos do Brasil às eleições livres e à liberdade de expressão dos americanos […] cobraremos do Brasil uma tarifa de 50% desvinculada de todas as Tarifas Setoriais.”

Contudo, a aplicação de sanções comerciais por motivações puramente políticas é uma prática altamente incomum, sobretudo entre membros fundadores da Organização Mundial do Comércio (OMC) como Brasil e Estados Unidos. Todos os indícios apontam que a tarifa anunciada é, de fato, uma ‘punição explícita’ de natureza política, desprovida de justificativa econômica ou protecionista — afinal, os Estados Unidos possuem superávit comercial com o Brasil. Caso implementada, tal medida violaria frontalmente os princípios mais fundamentais da Organização. Quais? Vejamos:

Princípio da Nação mais Favorecida (NMF)

Talvez o princípio mais importante da OMC, consagrado no Artigo I do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT).

  • O que significa: qualquer vantagem, favor, privilégio ou imunidade concedida por um membro a um produto originário de outro país deve ser imediata e incondicionalmente estendida a produtos similares de todos os outros membros da OMC. Ao anunciar uma tarifa de 50% especificamente sobre os produtos do Brasil, os EUA estariam discriminando o país. O Brasil passaria a receber um tratamento pior do que os outros 162 membros da OMC, configurando uma violação direta e clara deste princípio.

Princípio da Consolidação Tarifária (Tariff Bindings)

Cada membro da OMC negocia e se compromete a não elevar suas tarifas de importação acima de um certo nível, que é “consolidado” (bound) em suas listas de concessões (Artigo II do GATT).

  • O que significa: As tarifas de importação não podem, em teoria, ultrapassar o teto negociado e consolidado na OMC. Esse teto é a garantia de previsibilidade para os exportadores. Uma tarifa linear de 50% sobre todos os produtos brasileiros certamente excederia as alíquotas consolidadas pelos EUA para a vasta maioria dos itens. Os tetos americanos para produtos industriais e agrícolas são, em média, muito inferiores a esse patamar. Aplicar 50% seria uma quebra massiva do compromisso assumido pelos EUA com todos os seus parceiros comerciais na OMC.

Proibição de medidas unilaterais e o Sistema de Solução de Controvérsias da OMC

A OMC possui um sistema robusto e obrigatório para a resolução de disputas (o Dispute Settlement Understanding – DSU).

  • O que significa: Um membro não pode “fazer justiça com as próprias mãos”. Se um país acredita que outro está violando as regras da OMC, ele deve iniciar um processo formal de consulta e, se necessário, abrir um painel de disputa. Apenas o Órgão de Solução de Controvérsias da OMC pode autorizar a retaliação, e somente após o processo ser concluído. Impor uma tarifa como “punição” por questões políticas internas de outro país (como o julgamento de um ex-presidente) é o exemplo clássico de unilateralismo, que o sistema da OMC foi projetado para impedir. A motivação declarada não tem relação com nenhuma das exceções permitidas pela OMC para aumentar tarifas, como práticas de dumping, subsídios ilegais ou salvaguardas emergenciais. Seria uma ação totalmente fora do arcabouço legal do comércio internacional.

Portanto, além das medidas permitidas no âmbito da própria legislação brasileira, o Brasil também pode adotar medidas contra os Estados Unidos dentro da própria OMC, que incluem as etapas de Pedido de Consulta, Estabelecimento do Painel (que na prática funciona como um tribunal de primeira instância) e Autorização para Retaliação. Aqui vale dizer que o Brasil, em caso de sucesso de seu processo, teria uma poderosa ferramenta à sua disposição, a chamada Retaliação Cruzada (Cross-Retaliation), que estabelece que a contramedida não precisa ser no mesmo setor. Ou seja, se a tarifa de 50% afeta principalmente produtos do agronegócio brasileiro, o Brasil poderia ser autorizado a retaliar suspendendo concessões em outras áreas onde o impacto para os EUA seria maior.

A decisão de seguir este rito processual seria, em si, uma resposta à natureza da agressão sofrida. Ao optar pela via legal e multilateral, o Brasil se contrapõe diretamente à lógica da medida americana. Como se nota, o tarifaço anunciado por Trump de 50% contra o Brasil representa uma negação dos princípios básicos que regem o comércio multilateral há mais de 75 anos. É o abandono de um sistema baseado em regras por um sistema baseado no poder e na retaliação política, minando a previsibilidade e a segurança jurídica que são a razão de ser da própria OMC.

A verdade é que, incapaz de impor suas vontades à China por sua alta dependência econômica, Trump mira no Brasil, um alvo mais fácil de atacar e mais barato de punir. É o clássico comportamento de quem, ao não conseguir enfrentar os grandes, desconta nos que estão por perto para parecer forte e continuar sua narrativa política, ausente de conexão com a realidade.

Acredito firmemente que seria um equívoco classificarmos o fenômeno em curso como diplomacia, pois esta pressupõe a primazia de interesses do Estado. O que se revela, na verdade, é a instrumentalização da máquina governamental por caprichos e ressentimentos de ordem pessoal, uma marca corrosiva do trumpismo e, por extensão, do bolsonarismo. Quando um governante confunde a nação com seu próprio ego, a ponto de suas convicções privadas suplantarem o bem comum, não há outro nome senão despotismo, ecoando a célebre máxima absolutista ‘l’état, c’est moi!: “O Estado sou Eu!”

Essa é a parte que mais preocupa. Quando uma decisão que afeta bilhões em comércio é movida por vaidade e vingança pessoal, o prejuízo não é só político diplomático, é econômico, portanto é humano. São empregos que se vão, demissões em massa, falência de pessoas e empresas. O Brasil foi jogado às cordas sem aviso prévio, sem diálogo, uma violência sem justa provocação e sem culpa alguma da vítima.

Como disse o presidente Lula, o processo em curso movido contra os golpistas do 8 de janeiro e contra o próprio Bolsonaro é de competência exclusiva da justiça brasileira, e da sua independência e lisura dependem nossa própria soberania, e ela não é negociável. Se o país não se posicionar firme e energicamente agora, essa tarifa pode ser apenas o primeiro capítulo de uma saga catastrófica.