Um novo mundo emerge

            Fala-se muito que uma transformação mundial está a caminho, porém os fatos mais recentes — e os processos dos quais eles fazem parte — demonstram que tal mudança, na realidade, já chegou até nós.

            Não vivemos mais a conjuntura do final do século passado, em que os Estados Unidos (EUA) gozavam, mesmo nos rincões desconhecidos do mundo globalizado, de uma hegemonia inconteste. À época, os norte-americanos podiam decretar invasões a países como o Iraque sem temer represálias, confiantes de que, ao final de qualquer cenário, estariam mais fortes do que antes. Hoje, sua influência ainda é enorme, porém em franco declínio nos diversos aspectos que constituem a potência de um império global, de tal maneira que dificilmente os falcões da Casa Branca poderão evitar o rebaixamento do seu domínio no xadrez geopolítico. Em certos continentes, como as Américas e a Europa Ocidental, seu controle continuará implacável. Entretanto, a periferia segue aprofundando seus laços com a superpotência emergente: a República Popular da China.

            Desde que iniciou sua ascensão, a China tem recebido projeções de analistas convictos de que seu colapso viria a qualquer momento. Para estes profetas do apocalipse, o modelo concebido por Deng Xiaoping era — e continua sendo — insustentável, devido ao suposto anacronismo e totalitarismo do partido comunista, que, em tese, seria incompatível com o desenvolvimento das forças produtivas mais avançadas. Na época, esperava-se que a China repetisse o colapso da União Soviética e do restante do Bloco Socialista, atribuída, em boa medida, a medidas políticas e econômicas atabalhoadas, feitas por uma burocracia corrupta e ossificada, excessivamente afastada da classe trabalhadora. Porém, os fatos lhes mostraram o contrário. O gigante asiático tornou-se, após mais de quarenta anos de desenvolvimento fulminante, a locomotiva do capitalismo contemporâneo. Até hoje, nenhum outro país testemunhou um progresso socioeconômico que se igualasse ao de Beijing. No passado, quem poderia ter imaginado que o capitalismo seria salvo de si mesmo por políticas capitaneadas pelo partido comunista chinês?

            Mesmo assim, a China está longe de ser um país idílico, com todos os seus problemas mitigados ou resolvidos — talvez, o seu maior desafio seja o impacto socioambiental causado pela industrialização em larga escala, embora avanços tenham sido feitos. As acusações de violação dos Direitos Humanos, a explosiva desigualdade social, a problemática relação com Hong Kong, o Tibete e o Xinjiang, também são temas espinhosos para os dirigentes comunistas. Todavia, os EUA também tiveram de lidar com questões internas graves, tais como conflitos raciais (ainda combustível para crimes e divisões internas), uma Guerra Civil, o genocídio das nações indígenas etc. Por outro lado, numa sociedade tão complexa como a chinesa, soluções rápidas e fáceis são fantasiosas; há que se recordar que esse povo traz consigo milênios de história, cultura e tradição, tendo, portanto, uma profunda compreensão da sua identidade e missão para os anos vindouros. Isso se expressa, por exemplo, em planejamentos para as décadas futuras que, no hemisfério ocidental, seriam incompreensíveis e irrealizáveis. Estou me referindo ao projeto popularmente conhecido como as “Novas Rotas da Seda”, que, se for concretizado, transformará a feição da Humanidade para o restante do século XXI.

            Hoje, quase todos os países, incluindo fiéis aliados dos EUA, como Austrália, Alemanha e Coreia do Sul, têm como seu maior parceiro comercial a China, de modo que não há quase nada que os estadunidenses possam fazer para alterar uma conjuntura tão adversa aos seus interesses. Em tempos de carestia generalizada, o “dinheiro comunista” é mais que bem-vindo: trata-se de uma tábua de salvação para economias em crise severa e/ou permanente, como é o caso de quase toda a periferia do sistema capitalista. O que seria do agronegócio e do extrativismo brasileiro sem a demanda insaciável da economia chinesa por commodities? É a busca por matérias-primas que, de fato, mantém de pé a balança comercial brasileira. Aliás, há quem afirme que vivemos um neocolonialismo à chinesa, em que a relação metrópole-periferia estaria sendo, lentamente, transferida de Washington para Beijing; quanto a isso, devemos aguardar que o futuro nos traga as respostas.

            Também há quem enfatize o poderio bélico dos EUA como uma garantia da sua supremacia. Entretanto, mesmo tendo capacidade de intimidar nações menores e submissas com seus jatos, mísseis e porta-aviões, os norte-americanos experimentaram derrotas amargas ao longo dos últimos setenta anos. Numa perspectiva mais ampla, de pouco serviu aos falcões possuir a maior máquina de extermínio e destruição que já se viu, pois, desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quase todas as guerras perpetradas pelos EUA resultaram em impasse, recuo ou fiasco. Basta recordar o intragável armistício, em 1953, com a Coreia do Norte, o fracasso, em 1961, da invasão da Baía dos Porcos, o fiásco, em 1973, para o Vietnam, o revés, em 2021, para o Talibã; tampouco eles triunfaram em tentar aniquilar seus arqui-inimigos, Rússia, Coreia do Norte, Síria e Venezuela, com intervenções, bloqueios e sanções econômicas. Mesmo a vitória no Iraque, uma guerra custosa e que pouco lhes serviu, não realizou seu intento máximo: o cerco e futuro ataque ao Irã, que se mantém ainda de pé como o maior antagonista aos EUA no Oriente Médio.

            Enquanto isso, acumulam-se, por toda parte, os sintomas de um mundo em convulsão. A cada ano que passa, tais sinais tornam-se mais visíveis: na Europa Oriental, os russos acumulam vitórias contra os ucranianos, ainda que com colossais perdas humanas e materiais; no Oriente Médio, articula-se uma resposta aos ataques israelenses contra o povo palestino, o que pode provocar uma guerra regional entre muçulmanos e judeus; na África, em menos de três anos, seis países, Gabão, Níger, Mali, Guiné, Sudão e Burkina Faso, passaram por insurreições das suas forças armadas; na América Latina, o chavismo ganha uma frágil sobrevida com a terceira vitória eleitoral de Nicolás Maduro, preservando o sentimento antiamericano no continente mais próximo à Casa Branca; no meio ambiente, eventos climáticos extremos põe em risco a estabilidade de sociedades de diversas partes do globo; por fim, no mercado financeiro das economias emergentes, fala-se em desdolarização das nações que buscam maior autonomia frente ao poderio do dólar.

            Ao mesmo tempo, guerras “menores” ameaçam explodir. Destacam-se os conflitos no Cáucaso, especialmente entre armênios e azerbaijanos, ameaças de anexação de Essequibo pelos venezuelanos, bem como o interminável conflito entre coreanos do sul e do norte etc. Ademais, guerras civis prosseguem sem solução visível para um futuro próximo, como na Síria, na Etiópia, no Sudão, no Iémen, em Mianmar e assim por diante. Há, por fim, repetidas escaramuças fronteiriças entre chineses e indianos, eternos rivais — e detentores de armamento nuclear — no continente asiático; o mesmo ocorre na disputa entre indianos e paquistaneses pelo domínio da Caxemira, ou nas disputas marítimas, entre vietnamitas, filipinos e chineses, pelo controle sobre o Mar do Sul da China. Por fim, muitos já antecipam como inevitável uma escalada militar, ainda nesta década, entre Taipei e Beijing, dando como certa a intenção da China em resolver o conflito com os vizinhos taiwaneses da pior forma possível: uma guerra aberta no estreito de Taiwan, por ponde transita parte considerável das mercadorias globais, em especial os semicondutores asiáticos. Nesses contextos de gravíssima perturbação global, a ONU exerce um papel inexpressivo, próximo à irrelevância geopolítica.

Tais fatos retratam o colapso de uma ordem internacional moribunda e caquética, sem sinais de que possa ser salva por um heroico ocupante da Casa Branca, seja ele/ela republicano ou democrata, globalista ou nacionalista, progressista ou conservador. Na verdade, a questão que mais deve preocupar a Humanidade quanto ao mandatário no Salão Oval, será a sua escolha entre conduzir o mundo a uma conturbada partilha de poder ou à progressiva deterioração de um cenário geopolítico às portas do extermínio nuclear. A dimensão e a duração de tal processo podem ser debatidas, mas a sua inevitabilidade não. Aqui, deve-se sublinhar que uma parte dos ocidentais jamais admitiu ceder terreno a um povo do terceiro mundo, uma ex-colônia sua, haja vista que a Coreia do Sul é um protetorado americano e o Japão, vencido na Guerra do Pacífico, foi forçado a abdicar, no papel, de quaisquer ambições militares. De fato, ainda há, no seio das elites do Atlântico Norte, quem considere os asiáticos uma sub-raça a ser invadida, subjugada e colonizada.

            A aliança entre Vladimir Putin e Xi Jinping, formalmente anunciada em fevereiro de 2022, às vésperas da invasão russa à Ucrânia, ainda que enfrente percalços pelas desconfianças ancestrais entre os dois povos, representa um marco na história do século XXI. Trata-se do encontro entre a segunda maior economia mundial e a maior potência bélica da Eurásia, possuidora de colossais reservas de combustível e matéria-prima; é o amadurecimento diplomático de um par que compõe o núcleo do BRICS e da Organização de Cooperação de Shangai, e que são considerados o maior obstáculo à hegemonia estadunidense. Ambos compreenderam que, aliando-se, possuem meios e recursos para desafiar e transformar o status quo em benefício próprio, algo que, há quinze anos atrás, seria inviável. Se houver uma nova ordem mundial que evite um conflito nuclear entre as potências, ela será capitaneada por tal união de países, representantes da maioria global, assim como da maior parte das riquezas produzidas pela Humanidade.

            Sem dúvidas, quem apostou, há mais de trinta anos, em um “fim da História”, cometeu um erro crasso: a democracia liberal continua sendo posta em xeque e os paradigmas econômicos do Consenso de Washington perderam parte da sua credibilidade. O enriquecimento faraônico das elites ocidentais não alcançou as camadas populares, que, com o passar dos anos, acumularam ressentimento, passando a desconfiar — com boas razões — do establishment político. Ora, o próprio lema que consagrou a campanha de Donald Trump em 2016, o MAGA (Make America Great Again), carrega consigo o reconhecimento de um presente que frustrou expectativas alimentadas pelas lideranças bipartidárias. Com efeito, nesse apelo infantil, nostálgico e simplório, está exposto o fracasso dos presidentes que ocuparam a Casa Branca nas três décadas em que a China mais cresceu: Bill Clinton (1993 – 2001), George W. Bush (2001 – 2009) e Barack Obama (2009 – 2017); os dois primeiros acabaram relegados ao ostracismo, enquanto que Obama tenta sobreviver à maré que põe em xeque o establishment partidário no ocidente. Não é por acaso que, ao tratar dos seus antecessores, Trump se apresente como uma espécie de “ruptura com o sistema”, um adversário do “deep state”. Se isso guarda alguma verdade, é outra discussão.

Também não é por acaso que a classe trabalhadora do ocidente clame por uma mudança, seja esta qual for. Romper com o passado fez com que as classes populares elegessem, em 2008, o primeiro presidente negro dos EUA, e que acabou sendo sucedido, oito anos depois, por Trump, uma figura ainda mais controversa, ou seja, outro gesto de mudança abrupta. No entendimento do americano comum, as velhas soluções não parecem funcionar, as instituições perderam parte da sua inabalável credibilidade e a corrupção tomou conta de quase tudo. Daí provém, em parte, a razão de assaltar o Capitólio em 2021: se as instituições não vêm ao povo, o próprio povo deve ir até elas, tomando-as tal qual ocorrera com a Bastilha francesa. Felizmente, os extremistas não obtiveram seu objetivo máximo: instabilizar o cenário político a tal ponto que fossem capazes de impedir a saída de Trump do poder. No entanto, a insatisfação das camadas populares permanece mais viva do que nunca, e tanto o trumpismo quanto o bolsonarismo sobrevivem, a despeito das derrotas eleitorais de 2020 e 2022.

A base que os mantém de pé, de fato, não abre mão de suas convicções, tal qual fanáticos de uma seita obscura. Eles são, em boa medida, homens das camadas médias e baixas da sociedade que viram sua qualidade de vida chafurdar nas últimas décadas; muitos tiveram uma educação rasteira e com poucas chances de ascensão social, vivendo em lugarejos remotos do interior dos EUA, em meio a um clima provinciano e reacionário, sem os ares cosmopolitas de metrópoles como New York, Los Angeles e San Francisco. Não é à toa que Trump foi derrotado, tanto em 2016 quanto em 2020, na maioria das grandes capitais americanas, ao passo em que venceu nos condados mais remotos.

Em 2016, a reação de alguns democratas preteridos trouxe à baila seu elitismo, uma incapacidade crônica em buscar compreender o cotidiano dos mais pobres. Foi a própria Hillary Clinton quem definiu os apoiadores de Trump como “deploráveis”. Na realidade, a profunda humilhação que estes “deploráveis” sentem pela sua pobreza, os obriga a achar alguém para culpar, de sorte que os demagogos saíram à procura dos bodes expiatórios ideais: imigrantes, muçulmanos, esquerdistas, minorias etc. Até agora, o receituário da intolerância rendeu algumas vitórias à extrema direita. Mais uma vez, vestir-se como outsider, isto é, alguém “fora do sistema”, acabou por se tornar a virtude máxima para o homem público, ainda que isso não passe de conversa furada. Nesse sentido, o atentado contra Donald Trump caiu como uma luva para os seus seguidores, tal como ocorrera, em 2018, com Bolsonaro, pois o consagrou como mártir da “luta pela liberdade” contra a cultura esquerdista woke. Logo, quem esperava que Trump saísse da cena política após seu revés, em 2020, agora precisa lidar com a possibilidade do seu retorno à Casa Branca, o que daria fôlego a movimentos extremistas em diversas regiões do globo.

Mesmo assim, a História costuma nos surpreender. Às vezes, ela o faz de uma maneira que preferiríamos que não ocorresse. Sentimo-nos frustrados por não poder mudar nada do que achamos errado e injusto, até que a mudança vem quando menos esperamos, como um incêndio que toma de súbito a casa inteira. Quem lutou à mão armada contra a Ditadura (1964-1985) deve ter se sentido numa luta de Davi contra Golias, e muitos morreram com bravura e heroísmo, mas sem conseguir depor os militares e muito menos pôr fim ao capitalismo. Até que a democracia ressurgiu, o povo respirou aliviado e os militares voltaram à caserna. Em poucos anos, a Ditadura, que parecera, em outros tempos, tão sólida, passou a ser um capítulo nos livros empoeirados de história. Parece que a maré da mudança nos foge do controle, quer aceitemos isso ou não.

Na juventude, convencemo-nos de que os nossos sonhos se confirmarão, até que a maturidade nos imponha as verdades mais indigestas. Houve quem sonhasse que a União Soviética duraria para sempre, que ela seria o farol que conduziria a Humanidade à libertação; houve também quem dissesse que, em pouco tempo, o capitalismo morreria pelas suas contradições internas. Nenhuma dessas previsões, tão populares em épocas passadas, se concretizaram. A experiência soviética sumiu do mapa, deixada de lado por seus velhos dirigentes, enquanto que o capitalismo segue regendo a Humanidade com sua massacrante espoliação. Palavras como “socialismo” e “revolução” deixaram o horizonte coletivo, e ninguém se dispõe a desafiar a exploração das massas no Brasil e no mundo. Sentimo-nos como George Floyd: sem conseguir respirar.

Por outro lado, nós podemos nos assegurar, hoje, de um único fato: as tendências que despontaram nos últimos anos apontam para um futuro distinto daquele que existira gerações passadas, e não há sinais de que essa mudança — em forma de avalanche incontrolável — possa ser revertida ou contida pelos centros dominantes, seja por meio de sanções, golpes ou de incursões militares. Pelo contrário, alguns destes centros carcomidos por seus vícios e preconceitos parecem incapazes de assimilar o que está acontecendo. Nas palavras do próprio Xi Jinping, em encontro com Putin, testemunhamos a maior mudança dos últimos duzentos anos, quando as nações imperialistas impuseram, a ferro e fogo, sua dominância sobre o planeta. Naqueles tempos, africanos, asiáticos e latino-americanos provaram o amargor da espoliação, do racismo e do genocídio. Agora, tudo é diferente, porque, como previra Mackinder, ainda em 1904, quem controla a Eurásia, controla o mundo. Péssima notícia para Washington, que jamais teve de lidar com um adversário tão poderoso quanto o bloco sino-russo, de modo que sua reação a esse desafio determinará o restante do século XXI.

Por fim, permito-me encerrar essa avaliação num tom filosófico. Talvez haja na sabedoria do Oriente algo que nós, ocidentais, devêssemos aprender o mais rápido possível, pois, tal como os budistas nos ensinam há mais de vinte e cinco séculos, a roda da impermanência é inescapável e avassaladora; seu movimento esmaga pobres e ricos, fracos e fortes, miseráveis e poderosos. A essa altura da história humana, quem pode detê-la?

Daniel Viana de Sousa

Este texto foi publicado em A Forma da Escrita